Que raio fizeste a Mourinho, Zé?
Vinte anos passaram. Mais até. Lembro-me de responder muito sério ao John, colega do Guardian que apanhei em reportagem durante o Euro-2004 (e com quem perdi o contacto, anos depois), e sem pestanejar uma única vez: vai por mim, mate, ele vai abanar o vosso mundo! Não sei se dias antes ou depois, fiquei frente a frente com Arsène Wenger, nas escadas de acesso à bancada de imprensa do Municipal de Coimbra. Jogava a França (com a Suíça, fui confirmar) e monsieur ia destilar sabedoria aos microfones da televisão gaulesa. Ali, em pleno verão, sem ter blusões ou anoraks com zip para puxar e com a vantagem do higher ground por um ou dois degraus, depois da espantosa época dos Invencíveis, o homem que revolucionou o futebol inglês limitou-se a encolher os ombros e a dizer «Vamos ver! Vamos ver!»
A pergunta foi a mesma: «Agora, com Mourinho, como vai ser?» Para Wenger não foi bom, já para o John, que tenho a vaga ideia de torcer pelo Chelsea — perdoa-me se estiver errado, rapaz, mas a idade não perdoa, como também deves saber —, foi extraordinário. Cinquenta anos de seca tinham terminado aí. E não ficou pedra sobre pedra na Premier League.
Para mim, durante muito tempo, foi intocável. Mágico. Transformava carvão em ouro. Diego Milito tornou-se melhor do que Batistuta. Walter Samuel parecia o novo Passarella. Zanetti correria dois campos se necessário, mesmo que fosse perseguido por Cafu. Sneijder encontrava mais espaço do que Michael Laudrup. Ou, hoje, De Bruyne. E Balotelli ainda não acreditava que certas coisas só lhe aconteciam a ele. Ninguém como Mourinho acrescentava camadas de qualidade aos jogadores só com palavras. E com isso ganhou tudo o que importava.
Não vou repetir o que já escrevi tantas vezes. A minha opinião não mudou. Quem mudou foi ele. Esse treinador, esse líder já não existe. Será que vieram os extraterrestres, levaram o original e deixaram um autómata? Não sei, não faço ideia. Zé, que raio tu fizeste a Mourinho?
Aqui há dias escreveu-se que o Nottingham o poderia escolher para o lugar de Nuno. Não acho que este mereça ser despedido, porém dei comigo a pensar: treinar o clube de Brian Clough, football bloody hell, que maravilhoso destino! Pagaria para ver. Aliás, não pagamos todos? E depois fecham um dos canais para nos extorquirem mais dinheiro. Ah, já divago!
O inglês também tinha o seu Rui Faria (algo que o português já não tem). Chamava-se Peter Taylor. Era braço direito, conselheiro e tantas coisas mais. O perfil ponderado e analítico do antigo guarda-redes complementava o permanente estado febril de Brian, um avançado que acabara a carreira de forma prematura e seu antigo colega de balneário no Middlesbrough. Enquanto o boss motivava, criticava ou elogiava os jogadores, e usava também os media em seu proveito, distribuindo mensagens para dentro e para fora, o outro, na sombra, ultrapassava o papel clássico do contraponto emocional. Era um ótimo detetor de talento e responsável pelos treinos.
Clough, esse, era um Mourinho antecipado. Atirava tiradas inesquecíveis, carregadas de arrogância. «Se tenho uma divergência com um jogador, discutimos durante 20 minutos e, depois, concluímos ambos que eu tinha razão», disse uma vez. Noutra, foi mais longe: «Não direi que fui o melhor treinador de todos, mas estava seguramente no top-1.» E conseguia sempre provocar um pouco mais: «Dizem que Roma não foi feita num dia, mas também não me escolheram para esse trabalho.»
Juntos, Taylor e Clough foram incríveis. Ganharam dois títulos de campeão europeu e um inglês, e fizeram as suas equipas lutar bem acima do seu real valor. Depois de se chatearem, por culpa de autobiografia publicada pelo técnico principal que o adjunto desconhecia, nunca mais atingiram o mesmo nível de sucesso. É, por isso, impossível não ver num deles Rui Faria e no outro o Special One. Mourinho no Forest seria a história a repetir-se sem pudor, tantos anos depois.
Todavia, deixemos o City Ground e concentremo-nos em Istambul e na Luz. Ao longo das duas últimas semanas só me apeteceu perguntar-lhe «quem és tu?» Decididamente não o puto amo, não o puto jefe, como lhe chamou Guardiola no auge da guerra entre o Real Madrid e o Barcelona. Parece um homem triste e não o mesmo. Desgastado. Conformado. Resignado, quando já certamente não quererá estar ali. O Benfica até lhe terá entrado na cabeça, a Seleção certamente passou, mas aqui Rui Costa e Martínez trocaram-lhe as voltas.
Não posso escrever que Bruno Lage ganhou os mind games, porque seria uma impossibilidade quântica, mas soube como evitá-los. Lembremo-nos de Benítez, de Wenger, de Brendan Rodgers e de tantos outros. Não havia misericórdia. O treinador do Benfica desfez-se em elogios, por vezes nitidamente exagerados ou descontextualizados. Mostrou respeito (e receio) sempre com mais um médio no onze do que o habitual. E Mou deixou-se embalar ao ouvir o que já lhe dizem pouco, enquanto apreciava a subserviência, quando é ele que muitas vezes leva o autocarro para dentro de campo. Aceitou com naturalidade quando Lage atirou que era o melhor do mundo. Entrou na rábula de Setúbal. Pareceu uma sombra de si próprio.
É verdade que se lamentou várias vezes e isso não é novo. Sorriu ainda na expulsão de Talisca, mas no resto foi banal, comum, vulgar. Quase tanto como a equipa que tem montado nestes meses, apesar de vários jogadores talentosos no grupo. Foi presa demasiado fácil para um Benfica ainda longe de estar a jogar um bom futebol.
Mourinho perdeu o toque. Está ainda mais distante do que foi. Racionalmente já ficara para trás, hoje nem emocionalmente responde. É que, por vezes, nem os génios conseguem descobrir o trilho de volta. Clough, sempre ele, dizia: «Não me mandem flores quando morrer. Se gostam de mim, façam-no enquanto for vivo.» Continuo a acreditar que o velho Mou está aí, Zé! Espero que o encontres e que digas, de peito feito, como o outro: «Quando morrer, Deus vai ter de desistir da sua cadeira favorita!»
Artigos Relacionados: