Maria Heitor vai estrear-se no jogo de abertura do Women's Rugby World Cup 2025, entre Inglaterra e Estados Unidos, no Stadium of Light (Sunderland). FPR

Primeira árbitra portuguesa num Mundial apita hoje o jogo de abertura

Maria Heitor, 36 anos, vai estrear-se, a partir das 19h30 no jogo de abertura do Women's Rugby World Cup 2025, entre Inglaterra e Estados Unidos. Em contagem decrescente para o momento único na história da modalidade e da carreira, a inspetora da Polícia Judiciária falou com A BOLA

— É uma grande responsabilidade ser a primeira árbitra nomeada para um Mundial?

— Eu tento não ver como uma responsabilidade, mas claro que sim.

— E como é que está a ser a preparação?

— Intenso. Estamos a ter muita formação, muito sobre râguebi de 15. Para estarmos todos alinhados, todos com a mesma linha de pensamento. São 22 árbitros de campo, 10 árbitros principais, 6 árbitros assistentes e 6 TMOs.

— TMOs?

— O equivalente ao VAR [risos]. Estamos, basicamente, a aproveitar esta semana antes para estarmos juntos. Já tivemos na semana também em Portugal, curiosamente, no Algarve a treinar. Embora, este grupo já esteja junto há algum tempo. A maior parte esteve no último Campeonato do mundo e no Torneio das Seis Nações. Claro que uma pessoa diz sempre que um dia gostava de ir ao Campeonato do Mundo, só que nunca achei que fosse possível.

— E quando é que soube que ia?

— Nós soubemos a seguir ao torneio das 6 Nações Unidas, que, basicamente, era o palco para sair a seleção. E logo a seguir, mal acabou o Seis Nações Unidas, na última semana de abril. Na primeira semana de maio, começaram-nos a ligar e a dizer ‘Foste escolhida’ ou ‘Não foste escolhida’. E eu sabia que nesse dia podíamos receber uma chamada. Por acaso,foi logo de manhã! Ainda bem, porque estava nervosa, e um bocado reticente. Claro que era um objetivo, era um sonho, e tinha trabalhado muito para isto, mas também não queria ficar muito entusiasmada. Mas, claro, quando recebi o telefonema, não consegui conter as lágrimas.

— A Maria acha que esta eleição tem alguma coisa a ver com o resultado dos masculinos? Embora seja feminino, onde não há tanta expressão, há um novo fôlego no râguebi português?

— Não. Acredito que é uma coisa completamente independente. O facto de termos estado no campeonato masculino não influencia em nada eu estar aqui

— Como é feita a preparação, além da parte física?

— Antes dos jogos, estudamos as equipas que vamos arbitrar, analisando os últimos jogos, o sistema de jogos. Temos uma reunião entre os árbitros todos desse jogo, com o árbitro principal, os dois árbitros assistentes, o TMO e o bunker, que basicamente é o full-play review officer, que basicamente se houver, por exemplo, algum caso de cartão amarelo que pode ser vermelho, vai para essa pessoa, para ele tomar a decisão. Está fechado numa caixa, nós chamamos-lhe o bunker, e tem oito minutos para tomar essa decisão. Depois volta ao TMO e este informa o árbitro e os assistentes da decisão, se foi o cartão amarelo, se sobe para vermelho ou se se mantém.

— E são só árbitros femininos?

— Não. Os árbitros de campo são só femininos, mas os TMOs são seis, uma mulher e cinco homens. Mas o resto dos árbitros de campo são todas mulheres.

— A Maria trabalha, além da arbitragem?

— Sim, na Polícia Judiciária.

— E tem de gerir as duas atividades, para uma ausência grande?

— Não, não. Tenho estatuto de alta competição. É uma acumulação de funções na polícia, e por isso posso estar aqui um mês.

— Sem profissionalização seria complicado

— Muito. Tinha de meter férias. Algumas das árbitras que aqui estão são profissionais, mas não é o meu caso. Em alguns países já é possível. Para mim, é o meu hobby.

— E como é que os seus colegas veem este 'hobby'?

— Ficam cheios de orgulho. Ficam muito contentes. Eles são os primeiros a apoiar-me e a dar-me força. Eles já sabem tudo, e eles já sabem que eu tenho uns horários muito restritos. O trabalho começa às 9h00 e eu às 7h00 já estou a chegar ao trabalho, que posso treinar lá dentro, há ginásio. Assim, treino, tomo banho e vou trabalhar. Às vezes na hora do almoço também faço um treino, outras é no final do dia, depende. Mas muitas vezes, quando começo a trabalhar já tenho o treino feito, é menos de uma tarefa para o dia.

— E esse treino é diário?

— Eu treino seis, sete vezes por semana.

— E a Maria também arbitra no campeonato masculino?

— Sim, sim, durante o ano, regularmente estou no campeonato masculino.

— E como é que eles a recebem?

— Muito bem. Já houve outra mulher arbitrar a primeira divisão, a Filipa Jales. Acho que eles são muito queridos connosco. Dos jogadores não tenho nada a dizer, nada, pelo contrário. Eles são muito educados. Este ano conseguimos fazer o primeiro trio feminino, eu fui arbitrar um jogo e tinha duas mulheres assistentes, foi a primeira vez que fizemos um trio feminino em Portugal. Nunca tinha acontecido.

— Há também o apoio da Federação, claro, para a carreira internacional.

Um momento especial que Maria Heitor publicou nas suas redes sociais

— Sim, sim. Embora, muito do nosso trabalho seja individual. Temos uma vez por semana, durante a época, um treino coletivo, mas o resto dos treinos são nossos. Mas temos preparador físico, fisioterapeuta, no Jamor. Aqui na World Rugby, temos um psicólogo connosco. É um trabalho um bocadinho solitário. Agora estou aqui o mês com elas, mas muitas vezes faço um dia inteiro de viagem para fazer um jogo no meio de Gales, faço o jogo e regresso. Trabalhamos este grupo de 10 árbitras e seis assistentes, mas estamos sempre a rodar.

— Gosta de ser árbitra, foi o que sempre quis?

— Não. Eu fui para a arbitragem cedo porque queria ser melhor jogadora, queria conhecer bem as leis de jogo porque nesse caso acho que me tornaria uma melhor jogadora. Por isso joguei durante muitos anos, só há três ou quatro anos é que me foquei na arbitragem. A Federação perguntou-me se queria seguir uma carreira internacional e eu decidi que sim e parei de jogar. E foi tudo muito rápido, se calhar tive sorte de entrar numa boa altura.

Há três anos a fazer história no râguebi nacional
Há três anos, Maria Heitor tornou-se na primeira mulher a dirigir a final da Divisão de Honra, o principal escalão masculino da modalidade em Portugal, um destino muito distante daquele que imaginava quando se formou em educadora de infância na Universidade do Algarve. Em 2024, foi nomeada, pela primeira vez, para o painel de árbitros assistentes do torneio das Seis Nações feminino, repetindo nos dois anos seguintes. Há três meses viu o sonho de estar presente num Mundial tornar-se realidade e esta noite vai estrear-se no jogo de abertura do evento, ao lado da sul-africana Aimee Barrett-Theron, que dirige pela segunda vez um encontro de abertura de um Mundial.

— Onde jogava?

— Joguei em muitos clubes, Benfica, Sporting, Loulé, Agronomia…Joguei em França durante dois anos porque queria jogar num nível diferente e até fomos campeões, embora ninguém estivesse à espera. Eu queria era jogar, é a parte mais gira do jogo. Depois a arbitragem surge como uma maneira de continuar a ter competição e manter-me ativa. Se como jogadora já não dava para passar dali, como árbitra ainda tinha muito para fazer, um mundo para desbravar. E a verdade é que tem corrido bem. Fiz vários jogos do masculino, já fiz a final e cá fora também tem corrido bem. Comecei a arbitrar a segunda divisão do Europeia e de sevens, depois no Europeu na segunda divisão. E depois um dia chamaram-me para ir ao Torneio das Seis Nações Femininas como assistente.

— E como vê o râguebi feminino em Portugal? Se calhar, das modalidades coletivas, é o que está menos desenvolvido.

— É triste porque, se calhar é um desporto que tem valores que não existem em mais nenhum. Tem muito a ensinar a certos desportos, porque é tão digno e tão completo. Vemos como os jogadores tratam o árbitro por Sir, a maneira como só o capitão é que fala com o árbitro, vemos jogadores com dois metros a receber um carão amarelo ou vermelho, a baixar a cabeça e a pedir desculpas, a ir dar um abraço ao adversário que ofenderam… E isso não se vê em todos os desportos. Claro que puxo a brasa à minha sardinhas, mas acho que tem muito a ensinar a outras modalidades. Digo muitas vezes que se fosse outro desporto eu não seria árbitra, porque não era capaz de lidar com certos comportamentos que nós vemos nos campo. Eu não conseguia. O râguebi tem aquela visão de ser um desporto para brutos, e não é.

— Falta muito caminho ainda no râguebi em Portugal e no feminino mais ainda?

— Falta divulgar, falta passar nas televisões, falta aparecer, falta falar-se sobre. Fala-se durante o Mundial e depois já não se fala mais. Ninguém vê os mais pequeninos, falta divulgação.

Maria Heitor vai estar em seis jogos na fase de grupos
A inspetora da Polícia Judiciária, e antiga internacional portuguesa, vai apitar ainda mais cinco jogos: dia 24, o França-Itália (Grupo D), em Exeter, na equipa de Sara Cox, inglesa que apita num Mundial feminino pela quinta vez (2010, 2014, 2017, 2021 e 2025); dia 30, viaja até York para o Estados Unidos-Austrália (Grupo A) e, no dia seguinte, regressa a Exeter para o França-Brasil; o último fim de semana da fase de grupos volta a ser de jornada dupla para a árbitra portuguesa, que estará presente no Canadá-Escócia (Grupo B), a 6 de setembro e a 7 será assistente da neozelandesa Maggie Cogger-Orr, no Itália-Brasil (Grupo D). Só depois disto, a portuguesa de 36 anos que começou a jogar aos nove anos e foi obrigada a interromper por falta de oportunidade no feminino, regressando aos 15, sabe se continuará a acrescentar mais umas linhas à sua história no râguebi português, seguindo para os encontros dos quartos de final.

— Sem resultados essa tarefa é mais difícil...

— Mas até temos resultados. Temos uma equipa semi amadora a competir com seleções profissionais! Temos o exemplo do capitão da Seleção, tem a sua profissão, como metade dos jogadores. Só a outra metade é profissional.

— A profissionalização podia ajudar?

— Podia, mas ao mesmo tempo em Portugal, acho que não estamos preparados para profissionalizar os clubes. Por exemplo, no fim do ano, a Inglaterra profissionalizou a primeira divisão toda e neste momento, calhar, são candidatas neste mundial. Pela primeira vez a seleção inglesa já dá lucro. Ou seja, já chegámos a um ponto em que elas dão lucro. E este mundial aqui em Inglaterra vai bater recordes de vendas. Muitos dos estádios de futebol têm quase 80 mil lugares. No jogo de abertura, o estádio tem 48 mil lugares e já venderam mais de 40 mil. É em Sunderland, nem sequer é perto de Londres, onde só se realiza a final.

— Vai entrar no primeiro jogo...

— Sim, fiquei muito feliz. Ainda por cima com uma árbitra com quem gosto muito de trabalhar. Fiquei mesmo feliz. Vai ser uma loucura este Mundial, em Inglaterra.