João Cancelo continua a ser o melhor lateral-direito português e Roberto Martínez bem lhe pode agradecer o resultado positivo em Budapeste
João Cancelo continua a ser o melhor lateral-direito português e Roberto Martínez bem lhe pode agradecer o resultado positivo em Budapeste - Foto: IMAGO

Seleção: quando ganhar ainda não chega

Há um crescimento mental assinalável na Seleção, que se já sente como equipa grande em campo, mas ainda não recebeu de Martínez todas as armas para poder de facto sê-lo

Provavelmente, já passou, para quase todos vós, o momento para falar da Seleção. Esse período vai, religiosamente, de 1 hora antes a 1 hora depois da convocatória e, depois, da divulgação do 11 até 30 minutos após o derradeiro apito. De resto, interessa pouco, a não ser quando já se luta pelo Europeu ou Mundial. Aí, há bandeirinhas nas janelas, cachecóis em para-brisas, anúncios em série nas televisões, hinos afinados cantados a capella e gazetas acumuladas para ir ver jogos lá fora. Um aviso: se a sua companheira engravidar agora, ainda consegue garantir licença para ir para a bancada nos Estados Unidos, México e Canadá. Já se for você a abençoada, gabo-lhe a coragem. Vá — e pode fazê-lo a partir das duas semanas de vida — ou fique em casa, será sempre uma heroína.

Portugal é, reconheça-se, também vítima do próprio sucesso. Passou a ganhar mais vezes do que no passado, não só por estar mais forte, mas também por disputar qualificações acessíveis e que apuram cada vez mais seleções, o que afasta a discussão. Já eu vi Portugal cair diante de Itália e Suécia (1988), Bélgica e Checoslováquia (1990), Países Baixos (1992), Itália e Suíça (1994), e Alemanha e Ucrânia (1998). Hoje, rivais assim já só se veem lá mais para a frente. Sem haver muito a perder, o interesse também é menor, porém estou tentado a ficar-me pelo paradigma da falta de cultura desportiva, que leva a que as paragens para as seleções coincidam com a perda generalizada de interesse em campo, graças ao menor sentido de pertença. Quantos de nós não passaram pelas redes sociais e viram comentários como «A minha Seleção é o Sporting!» Ou «o Benfica». Ou «o FC Porto». Apenas sintomas.

Nas bancadas também se percebe, à exceção de uma ou outra claque arregimentada pela federação, que os adeptos, na maioria, não são os mesmos. Os que vão ver a Seleção estão ali pela festa, pela família, por Cristiano Ronaldo, por exemplo, ou outra estrela, e não tanto pelo jogo. Não é que isso tenha algo de errado, bem pelo contrário, todavia, há aqui uma fratura entre o que significa o clube e a Seleção para cada um dos portugueses, com penalização para a última. Roberto Martínez até veio de certa forma preparado, de uma Bélgica dividida política, social e culturalmente, que ainda assim se conseguia unir, no seu tempo, à volta da equipa nacional.

Mesmo que a poeira já tenha assentado e a maior parte de vós já esteja a pensar como organizar a agenda para assistir à próxima partida do mais-que-tudo, seja no estádio ou à frente do ecrã, num grupo de amigos, com cerveja, amendoins e tremoços à discrição, ou simplesmente sozinho, este texto é sobre a Seleção.

Ora, perante adversários de classe média baixa, Portugal fez o fundamental. Venceu e tem o apuramento na ponta da língua. Na Hungria, fê-lo de forma mais sofrível do que o esperado, mesmo que se reconheça a Szoboszlai e a Kerkez, sobretudo estes, grande qualidade. E a essa nota de instabilidade defensiva juntam-se mais umas quantas ideias que reúno aqui.

Dos quatro centrais, o selecionador tem uma certeza (Rúben Dias) e três dúvidas, ainda que não o admita. Gonçalo Inácio foi ainda assim titular diante da Arménia, mas com o crescer de exigência preferiu-se adaptar Rúben Neves. António Silva saltou lá para dentro na hora de defender, contudo, Renato Veiga, que a certa altura pareceu ganhar espaço, não somou um único minuto. Por isso, talvez seja importante fazermos o exercício: o que é que um médio da liga saudita, que tem boa capacidade de distribuição longa e remate de fora da área, acrescenta a um central da Liga, capaz de distribuir curto e longo com eficácia, está mais rotinado na cobertura da sua área e ainda é referência nas bolas paradas ofensivas? Deixo que respondam vocês.

No meio-campo, o selecionador está convicto de que Vitinha e João Neves, mais ou menos vezes pela direita, têm de jogar juntos, porém a verdadeira questão tem sido encaixar as demais figuras. Ainda não foi desta que Bruno Fernandes pareceu confortável em ter apenas o que sobra da dinâmica de construção transplantada de Paris, enquanto Bernardo Silva já pareceu mais ligado ao processo que o rival mancuniano, muito confortável no controlo da partida através da posse e há muito preparado para ocupar o espaço livre sem bola. Desperdiçar o talento de qualquer um dos dois parecerá criminoso, porém o processo coletivo deveria mais uma vez ser prioritário. Já sabemos que Martínez pensa doutra forma.

Não há muito a acrescentar na frente. Prefere-se a eficácia de Ronaldo na área a soluções que aproximariam o espanhol em muitos mais momentos do seu modelo, como Gonçalo Ramos. No primeiro encontro, a proximidade do agora também Al Nassr João Félix ajudou o recordista de tudo e mais alguma coisa (sem ironia), no segundo o seu isolamento forçou os colegas a cruzar demasiado, bloqueou o ataque posicional — os seus movimentos são quase sempre feitos à sua medida e não de um ponto de vista mais associativo e coletivo — e a equipa tornou-se também mais vulnerável às saídas rápidas magiares naquela pressão que só funcionará quando for verdadeiramente feita em conjunto. E era apenas a Hungria

Quem ler pode ficar com a sensação de que muita coisa está mal, porém a ideia que deve ser retirada é que poderia estar ainda melhor. A equipa continua muito débil diante de blocos mais baixos, um momento em que Roberto Martínez sente dificuldades desde os primeiros tempos da carreira, quando começou a treinar melhores atletas, ainda que haja quem elogie aquela rotação quase estéril da maior parte dos elementos do ataque. Sublinhe-se sim o crescimento mental da Seleção no pós-Liga das Nações, que o modelo ainda não acompanha. E não esqueçamos de elogiar vontade e postura.

O espanhol continua a ser um ou dois passos em frente em relação a Fernando Santos, que as melhores línguas considerariam certamente que apenas perdeu o toque de Midas ao ser despedido do Azerbaijão, depois de Besiktas e da Polónia. Ou a Mourinho. Ou às ideias de Abel Ferreira. É que, ainda longe de ser o homem certo, Roberto Martínez é o mais certo que, para já, podemos ter.