Ousadia precisa-se
O mercado português de transferências de jogadores de futebol profissional da Liga Portugal deste verão apresentou a maior diferença entre investimento — compra — e proveitos — venda — dos últimos três anos e um acentuado desequilíbrio entre os três primeiros classificados e o quarto, e destes para os restantes 14 clubes.
Para a época 2025/26 os clubes nacionais investiram até ao momento €337,82 M, dos quais €297,27 M referem-se aos quatro grandes — Sporting €68,8 M, Benfica €105,55 M, FC Porto €94,35 M (acrescem €17 M de metade dos direitos económicos de Samu, sendo o total final de €111,35 M) e SC Braga €28,57 M —, o FC Porto e SC Braga executaram os maiores mercados de sempre. Em 2023/24 o investimento total dos clubes foi de €283 M, em 2024/25 de €277 M, o valor da atual época superou o anterior máximo de 2023/24 em €54,98 M (+16,3%). Relativamente a proveitos esta época, até ao momento, faturou €388,60 M, com os quatro grandes a registarem €345,24 M — Sporting €128,57 M, Benfica €97 M, FC Porto €77,77 M e SC Braga €41,9M — sendo o valor mais baixo desde 2023/24 e consideravelmente menos que em 2022/23 época que faturou €670 M. Perante os atuais números o lucro relativamente às épocas anteriores caiu para €50,78 M, em 2023/24 foi de €130 M, e em 2024/25 pautou-se pelos €313 M.
A nossa interpretação e reflexão às evidências dos números permite referir:
1. Os três grandes reforçaram-se com o nítido objetivo de lutarem pela conquista do título nacional com a inerente entrada direta na Liga dos Campeões (LC), ou em consolação o acesso à terceira pré-eliminatória da LC via vice-campeão. Em complemento: (i) tentarem ultrapassar as fases de grupos das competições europeias com os imediatos benefícios do aumento dos prémios monetários; (ii) melhoria do ranking internacional para possível entrada na próxima edição do Campeonato do Mundo de clubes onde os prémios monetários são muito atrativos; e (iii) aproveitarem a montra internacional para promoverem os jogadores que pretendem transferir a curto prazo.
2. No caso do Benfica e do FC Porto, também existem fortes motivações políticas. Tanto o presidente Rui Costa como André Villas-Boas querem provar aos associados e adeptos as respetivas competências de gestão para justificarem a permanência na cadeira de sonho que ocupam. Em especial Rui Costa, que se encontra em momento eleitoral. No entanto, este intuito trouxe maior dívida financeira aos dois clubes. O saldo de mercado para o Benfica foi negativo em €8,55 M e para o FC Porto negativo em €33,59M M (inclui segunda tranche de Samu). Estes saldos agravam a dívida dos dois clubes e diminuem a capacidade de solvência e sustentabilidade financeira. O argumento de apoio ao aumento da dívida baseia-se na crença que os futuros bons resultados desportivos irão alavancar os prémios monetários europeus e o marketing para a transferência de jogadores. Uma crença de alto risco, como tal perigosa e que um dia poderá colocar em causa a viabilidade dos clubes.
3. O Sporting ao registar um saldo positivo de €59,77 M mantém-se coerente na parcimónia ao investimento, procurando desta forma a sustentabilidade financeira, económica e estrutural do clube. O investimento atual representa 54% do valor das vendas. Desde que Frederico Varandas é presidente registaram-se aproximadamente €746 M em vendas e €360 M em compras, um saldo positivo de €386 M. Independentemente da melhor venda ter sido Gyokeres (€65,76 M), o grosso das vendas no período de Francisco Varandas é referente a jogadores da formação do clube, o que é distintivo e provavelmente o melhor caminho para o Sporting manter-se competitivo. Pois, as outras receitas — direitos televisivos, patrocínios, bilheteira e merchadising — são insuficientes para manter ou aumentar o atual orçamento.
4. O SC Braga investiu 68% do dinheiro obtido nas vendas, denotando preocupação no controlo orçamental da época desportiva. Os direitos televisivos e os prémios monetários europeus do SC Braga são consideravelmente inferiores aos três grandes, o que condiciona o orçamento. Esta política racional e realista mantém o SC Braga como o quarto grande, mas, é limitadora para concretizar o ambicioso desiderato do presidente António Salvador: ser campeão nacional.
5. Os restantes 14 clubes juntos investiram €40,55 M, tendo o Famalicão investido 33% deste total, seguido do grupo que engloba V. Guimarães, Rio Ave e Arouca com 34%. Registe-se oito clubes que individualmente investiram igual ao menos de €2 M — €6,82 M ou 17% face ao total deste grupo de 14 clubes. Relativamente às vendas houve um total de €43,36 M, dos quais V. Guimarães, Arouca e Gil Vicente angariaram 53%. Sete clubes individualmente venderam igual ao menos de €2 M — 12% ou €5,18 M do grupo. O saldo final das transações dos 14 clubes foi de €2,81 M.
Estes níveis de vendas não permitem aos clubes melhorarem os seus orçamentos e consequentemente reforçarem os seus plantéis com jogadores de qualidade superior. Na realidade, investimento de baixo valor, com rara exceção, não atrai talento superlativo, o que leva a menor probabilidade de vender acima dos €15 M.
Estes números sugerem três considerações: (i) transação de baixo valor contribui pouco para o equilíbrio do orçamento operacional, o que requer músculo financeiro dos acionistas das SAD para manterem as operações; (ii) a baixa capacidade de investimento em jogadores diferenciados contraria-se simultaneamente com o desenvolvimento em quantidade e qualidade das camadas de formação, recrutamento de talentos provenientes do exterior, a utilização da Liga Portugal e das seleções nacionais jovens como montra preferencial (ex. Gustavo Sá do Famalicão e Nodar Lominadze do Estoril) e marketing para promoção da futura venda; e (iii) enquanto se aceita o nível competitivo entre os 14 clubes, perante os quatro grandes é demasiado desequilibrado o que está lentamente a esvaziar a verdade competitiva e o interesse do público (nacional e internacional) pela Liga Portugal com reflexo no valor comercial dos direitos televisivos.
As evidências do mercado de verão oferecem explicações para a competitividade do futebol profissional português, sugerindo a necessidade dos decisores da Liga Portugal — que são os clubes — tomarem decisões disruptivas a bem da causa comum. Em primeiro lugar, o modo de produção da indústria do futebol baseia-se no conhecimento e inovação — jogadores, treinadores, gestão do adepto, respetiva paixão, entre outros —, pois só estes garantem melhores espetáculos e mais público. Assim, para poder sobreviver e persistir se não revolucionar o quadro competitivo, a captação e divisão de dinheiro a Liga Portugal irá ser cada vez mais desinteressante e periférica.
Em segundo lugar, no cenário português é o saldo positivo do mercado de transferências que permite tudo funcionar. Mas, o lucro a sério que permite investimentos só aparece se as vendas forem por valores altos e os custos de produção baixos. Custos baixos só se conseguem com a aposta inequívoca na formação de jovens jogadores ou da atividade de prospeção de talentos ainda não referenciados pelos clubes mais fortes — algo que é cada vez mais difícil — e inseri-los em montras globais (ex. João Neves, Geovany Quenda e Samuel Lino). Esta é uma estratégia que permitirá a sobrevivência, condições de reprodução de novos investimentos, crescimento e sustentabilidade.
Em terceiro lugar, é evidente o fosso que existe dos três grandes para o SC Braga, e deste para os restantes 14 clubes e uma das causas é a divisão dos direitos televisivos. Assim, os decisores terão de ter o arrojo de alterar a divisão dos direitos televisivos contrariando o egoísmo de alguns e privilegiando uma maior equidade. Por último, os decisores devem equacionar uma possível alteração do quadro competitivo de forma a promover-se um aumento de competitividade e tornar a Liga Portugal mais atraente para o público e investidores.
A janela de transferência de verão da época 2025/26 evidencia a necessidade do futebol português romper com a inércia e promover alterações benéficas para todos, diminuindo a largura e profundidade do fosso financeiro e económico existente entre os clubes e tornando a Liga Portugal mais sexy. Para isso ousadia precisa-se.