Danielson foi jogador e enfrentou Rui Patrício e João Moutinho

Um Ricardinho, um Éder e um campeão a ver a festa adiada de Cabo Verde: «Ah, cachupa!»

Café detido por cabo-verdiano é o ponto de encontro de muitos imigrantes para acompanharem aquela que se espera ser uma página dourada da seleção. E onde esteve um amigo pessoal do capitão Vozinha

Quem diria que em Alfornelos se vive um jogo de Cabo Verde como se estivéssemos numa das ilhas do país africano. Foi no Café Óbvio que A BOLA acompanhou o Líbia 3-3 Cabo Verde, que podia dar um apuramento inédito dos tubarões azuis para um Campeonato do Mundo. A decisão ficou adiada para segunda-feira, mas o encontro foi vivido com uma intensidade neste café que bem se podia tratar da final de um Mundial.

O apito inicial, infelizmente marcado para as 14.00 horas portuguesas, afastou potenciais adeptos do café. «É uma pena», diz Ricardinho, «mas cá estamos». Ricardinho abriu o Óbvio há três anos, — cabo-verdiano de nascença, vive em Portugal há 14 — tem o espaço bem preparado para viver as emoções do futebol: cada uma das duas salas que compõem o interior têm uma televisão, estando um terceiro ecrã reservado para o exterior, onde uma pequena esplanada com cobertura albergou várias pessoas ao longo do jogo. Que também dizia respeito a portugueses, pela partilha da língua – Cabo Verde pode tornar-se no quarto país que fala português a ir a um Mundial – e não só.

Luís tatuou um tubarão azul, símbolo da seleção de Cabo Verde (Foto: Teófilo Afonso)

Exemplo disso é Luís Sequeira, português de 50 anos que tem… uma tatuagem do tubarão azul, alcunha desta seleção.

«Sou casado com uma cabo-verdiana» explica, ao dar-nos dois dedos de conversa enquanto acaba o café antes de ir trabalhar. «Tenho seis filhos, o mais velho tem 28 anos, os outros têm 27, 25, 20, 17 e a mais nova tem nove. Aliás, a minha mulher é que os tem, eu só os fiz», sorri, completando: «Na vida é preciso ter bom-humor.»

Há um campeão nesta casa

Ricardinho senta-se num sofá, já com vários compatriotas à volta, a ver a classificação do Grupo D da qualificação africana para o Mundial. Éder, um desses compatriotas, sabe que Cabo Verde pode apurar-se sem uma vitória — tinha de empatar com a Líbia e esperar que Camarões não ganhasse à Maurícia. Mas isso não importa. «Vamos ganhar», dizem todos os clientes.

Ricardinho, dono do Café Óbvio (Foto: Teófilo Afonso)

Um deles é Palo Araújo, que tem uma forte ligação ao futebol cabo-verdiano, sendo ele um vencedor do campeonato nacional daquele país, em 2017, ao serviço do Sporting da Praia.

Palo Araújo foi campeão de Cabo Verde com o Sporting da Praia (Foto: Teófilo Afonso)

«Ainda fui vice-campeão uma vez em 2011, também no Sporting da Praia, perdemos com o Mindelense. E no Boavista da Praia também fui às meias-finais, fomos eliminados no dérbi de São Vicente, apanhei uma tareia do Mindelense» revela com algum desgosto, até porque na mesma mesa estava Éder, residente em Portugal há 19 anos, com uma camisola do Mindelense e um sorrido de orelha a orelha.

Éder, imigrante cabo-verdiano, com a camisola do Mindelense (Foto: Teófilo Afonso)

Tiro no próprio pé a abrir

O entusiasmo com o início do jogo durou pouco: aos 45 segundos, Vozinha já estava a ir buscar a bola ao fundo das redes, após um autogolo muito infeliz de Roberto Lopes.

Ainda assim, por faltarem mais de 90 minutos (contando com o período de compensação) para o fim do jogo, o entusiasmo não desapareceu. O empate quase chegou aos 21’, com um cruzamento de João Paulo que bateu na trave. E a mais de 2100 quilómetros do Estádio Internacional de Trípoli, Palo bateu na mesa do café.

Amigo de Vozinha jogou contra Patrício

Ao passear pelo café durante o intervalo, A BOLA encontra-se com Danielson, cabo-verdiano que vive há 17 anos em terras lusas e que já conviveu com figuras desta seleção.

«Eu e o Vozinha somos amigos… considero-o um irmão, mesmo. Já o conheço há muitos anos, crescemos juntos em Cabo Verde, somos da mesma zona e jogámos juntos desde pequenos. Fomos campeões infantis e juvenis no mesmo clube», conta, orgulhoso pelo jogador do Chaves.

Vozinha realizou uma excelente temporada e vai continuar ao serviço dos flavienses em 2025/2026 (Foto: Chaves)
Vozinha ao serviço dos flavienses (Foto: Chaves)

Danielson teve «o auge da carreira» nos Jogos da Lusofonia em Macau em 2006, numa seleção jovem de Cabo Verde, pela qual jogou contra Portugal, num encontro particular «contra Rui Patrício, João Mourinho e Bruno Gama», revela.

«Um brinde ao 4-3!»

A partida em Trípoli quase nunca correu de feição a Cabo Verde, que se viu a perder por 3-1 aos 58’. Houve gritos horrorizados do café, seguidos de um silêncio sepulcral. Linda, prima de Palo e antiga funcionária da Federação Cabo-verdiana de futebol, era a mais expressiva. «Ah, cachupa!», berrava, quando uma jogada não corria de feição aos tubarões azuis.

Linda com o primo Palo (Foto: Teófilo Afonso)

Vozinha evitou males maiores à seleção. «Ele está-nos a representar a todos, a lutar pelo sonho dele e dos cabo-verdianos», disse Danielson. E isso bem se notou.

Até que o café ganhou vida com o frango do guardião líbio, após remate de Sidny Cabral (76’). Nem deu tempo para ninguém dizer que «só faltam dois golos» para o apuramento, porque Willy Semedo empatou a partida pouco depois (82’) e o café saltou rejubilante.

«Só, só, só mais um!», ouviu-se. E a vitória era mesmo necessária, porque Camarões ganhava o seu jogo. Quase 40 pessoas estavam à volta do café nos minutos finais e a saída da estação de metro de Alfornelos estava bem animada.

«Vamos brindar ao 4-3!», apelou Palo, com os nervos à flor da pele, mas com um entusiasmo palpável e contagiante.

Ao 3-1, os nervos dos tubarões azuis eram palpáveis através das três televisões do café. Com os ânimos calmos, o maior barulho era de um bebé que nem sabe o que é futebol, mas chorava em prantos, simbolizando um pouco, sem saber, os sentimentos de muitos cabo-verdianos na quela altura.

Mas com o empate repentino e a aproximação ao Mundial, as cervejas voltaram a subir, os brindes aumentaram e os sorrisos também. Esta é uma seleção que vai muito mais além dos menos de 600 mil habitantes que vivem no país. Incontáveis milhares de cabo-verdianos sorriram com uma esperança que qualquer pessoa pode sentir. Um sentimento que certamente será ainda mais forte quando enfrentarem Essuatíni na próxima segunda-feira, às 17.00 horas.

«Duas oportunidades para matar o jogo!»

A sorte de Cabo Verde esfumou-se no 3-3. Aos 90+3’, Nuno da Costa quis ser herói e protagonizou um falhanço inacreditável, com a baliza à mercê e o guardião adversário no chão. Danielson levantou-se e ficou imóvel, com as mãos na cabeça.

Três minutos depois, Jamiro Monteiro fez o golo da vitória… anulado por um fora de jogo inexistente, mas que prevaleceu na inexistência do VAR. E o jogo acabou.

«Tivemos duas oportunidades para matar o jogo», berrou Ricardinho, mas o empate acabou por evitar males maiores e, acima de tudo, deixar Cabo Verde com o destino nas próprias mãos. E já se sabe, na próxima segunda-feira, o Café Óbvio voltará a ter este entusiasmo com o jogo decisivo de Cabo Verde. «E vamos ter festa rija», garante Ricardinho que, tal como todos aqueles que assistiram ali ao jogo, acredita num futuro muito risonho no futuro imediato dos tubarões azuis.