José Mourinho chega como aposta de afirmação. Não é apenas treinador, é também cartaz. É futebol, mas também é poder — Foto: MIGUEL NUNES

Do silêncio de Lage ao ruído de Mourinho

Bruno Lage saiu com poucas palavras, mesmo quando tudo à sua volta era ruído. José Mourinho volta, 25 anos após a primeira passagem, como mito, mas também como risco. Crónicas de bancada é o espaço de opinião de Hugo Oliveira, sócio do Benfica e deputado à Assembleia da República

O futebol tem destas ironias. Num dia, o treinador atravessa o relvado com o desânimo estampado no rosto, o silêncio a pesar mais do que as derrotas. No outro, o mesmo banco é ocupado por uma das vozes mais estrondosas da história do jogo.

O Benfica despediu-se de Bruno Lage e recebeu José Mourinho com a pompa de quem abre as portas a um imperador. Entre o adeus e o regresso, a distância não se mede em dias, mas em símbolos.

Bruno Lage saiu com poucas palavras, mesmo quando tudo à sua volta era ruído. A derrota com o Qarabag foi apenas a gota que fez transbordar um copo já cheio de desconfiança. Do lado dele ficou um agradecimento ao Benfica. Do lado de alguns comentadores, palavras amargas: acusações de falta de lealdade e insinuações sobre bastidores pouco claros. Nem Bruno Lage nem Rui Costa mereciam tais ataques de caráter.

Rui Costa apostou em Lage com uma lealdade que poucos teriam. Se tivesse pensado apenas em si e nas eleições que se aproximam, teria sido fácil despedir o treinador no final da época passada, colocando-lhe às costas toda a responsabilidade do insucesso. Não o fez. E só alguém de má-fé, mal ou muito pouco informado, pode insinuar que Rui Costa teve gosto na saída de Lage.

Esta saída deveu-se apenas aos maus resultados e à falta de empatia de Lage com os adeptos, tudo o que Rui Costa menos queria. Não tenho qualquer relação pessoal ou contacto com um ou com outro, mas, daquilo que me é possível apreciar, nenhum deles merecia ver posta em causa uma relação que foi leal. Comentários disparatados nunca faltam no futebol, mas nesta despedida eram completamente dispensáveis. Mas não valerá a pena falar mais disso. Até porque o futebol raramente é tribunal, mas quase sempre é palco.

E o palco não ficou vazio. Poucos dias depois da saída de Lage, o Estádio da Luz vestiu-se de gala para receber José Mourinho. Vinte e cinco anos após a primeira passagem, regressa o homem que, ainda jovem, ensaiava os primeiros passos de um percurso lendário. Agora volta como mito, mas também como risco. Não vem para se despedir do futebol, vem para se lançar outra vez ao fogo. Fala em grandeza, em paixão, em fome de vitórias. Um discurso que mistura humildade e arrogância, a marca registada da sua carreira.

O contraste não podia ser maior. Lage discreto, reservado, a falar pouco. Mourinho teatral, ruidoso, a transformar uma conferência de imprensa num espetáculo. Um sai por não ter conseguido dar futuro ao presente, o outro entra com um passado que impõe respeito imediato.

Mas há uma linha que os une: ambos são filhos do Benfica. Ambos saltaram para a ribalta a partir da Luz. Lage caiu porque os resultados não convenceram. Mourinho chega como aposta de afirmação. Não é apenas treinador, é também cartaz. É futebol, mas também é poder.

A questão é saber se este regresso será bálsamo ou bomba. Mourinho já disse que em casa ganhava mais do que no Benfica. Que veio por paixão, não por dinheiro. Que aceita perder para poder ganhar. Que prefere o risco ao conforto. São palavras bonitas, mas o futebol mede-se em vitórias. E no Benfica ainda mais. E a paciência da Luz é tão curta quanto a sua memória é longa.

Do ponto de vista simbólico, este é talvez o maior choque de narrativas que se podia imaginar. Um treinador que sai sem nunca ter conquistado as bancadas. Outro contratado entre aplausos e promessas. Um adeus envolto na descrença, um regresso envolto em esperança. Mas, no fundo, ambos são peças de um mesmo enredo: o de um clube que vive em permanente tensão devido à sua grandeza.

O Benfica não vive apenas de bola. Vive de política interna e externa, de guerras de bastidores, de bancadas inflamadas. Lage não resistiu a essa turbulência. Mourinho acredita que pode dominá-la. O tempo dirá. Mas com ele ninguém fica indiferente: tudo é maior, as vitórias sabem mais, as derrotas doem mais, os empates parecem tragédias.

Como muitos benfiquistas, também eu sinto a tristeza de ver Lage sair nesta altura e, ao mesmo tempo, a euforia do regresso de Mourinho. O coração não dita sentenças. Pelo contrário, é palco de emoções contraditórias.

 Por isso, esta crónica não é sobre justiça. Não é sobre quem tinha razão na saída de Lage, nem sobre quem lucra mais com a chegada de Mourinho. É sobre o que o Benfica faz sempre: transformar a sua vida interna num espetáculo que vai muito para além dos noventa minutos.

No fim, Lage e Mourinho representam duas formas de estar no Benfica. Um, sereno e discreto, acabou engolido pelo ruído. O outro, estrondoso e mediático, chega para abraçar esse mesmo ruído. Talvez a moral seja simples: no Benfica não há espaço para silêncio. A Luz pede barulho.

Se Mourinho devolverá títulos, ninguém sabe. Mas já devolveu ao clube aquilo de que ele mais gosta: intensidade, polémica, paixão. Uma lufada de ar fresco que muitos reclamavam depois de Schmidt e Lage. O desconforto que um clube grande precisa para se sentir vivo.

Lage não saiu pela porta grande, Mourinho entra pela porta principal. Um leva consigo tristeza, o outro traz a promessa de glória. Entre ambos, fica o Benfica, sempre maior do que qualquer treinador, muitas vezes refém da sua própria dimensão. E nós, nas bancadas ou diante do televisor, ficamos à espera. Do próximo jogo, da próxima vitória, do próximo capítulo desta novela interminável que é o futebol na Luz.