Ticha Penicheiro: o primeiro amor, o beijo olímpico que nunca aconteceu, evolução e a luta salarial das jogadoras da WNBA
— Voltando ao seu percurso no basquetebol, e vamos ao início, quando jogava até às tantas da noite num campo descoberto na Figueira da Foz ao pé de sua casa e a sua mãe tinha que a ir chamar porque já era hora de jantar e não aparecia. Foi lá neste documentário e o que é que aquilo te trouxe?
—Filmamos na Figueira e penso que passámos pelas traseiras. Honestamente, já vi o documentário há bastante tempo, por isso já nem me lembro bem de todos os detalhes. Mas aquele campo, ainda hoje se passar por lá, é nostálgico. Sei que foi ali que tudo começou, que mandei as primeiras bolas ao cesto e passei lá muitas e muitas horas da juventude: Foi aí que o bichinho e o sonho do basquete começou a crescer. É um campo bastante especial para mim e traz-me nostalgia.
— O que é que aquela miúda, naquele campo onde jogava contra rapazes, porque só eles tinham qualidade para jogar contra si e puxavam para a fazer crescer, sonhava? Ainda não devia ser ir estudar para uma universidade nos Estados Unidos. Recorda-se?
— Não sei se eram sonhos, mas divertia-me a jogar. Era uma coisa que me dava prazer. Isso também está um bocadinho perdido nos dias de hoje porque há tanta distração: telefones, consolas, muitos canais de televisão… Os miúdos podem fazer tanta coisa que não têm esse amor. Eu adorei o basquete, foi o meu primeiro amor, por causa do meu pai e do meu irmão. Não sei se havia muitos sonhos, mas havia diversão, algo que, às vezes, está perdida nos dias de hoje na juventude quando praticam desporto. Dava-me imenso prazer jogar nas traseiras [da casa].
— Tenho aqui este livro, que é da sua primeira época na WNBA. Se abrir onde está marcado, vê o…
— Exato, onde o nome está mal escrito [Ticha Penicherio]
O meu sonho era vingar na WNBA, ser All-Star — uma pessoa começa a sonhar e quer o anel, um campeonato.
— Vê essa rapariga de franja, que sonhos tinha em 1998, quando chegou à WNBA?
— Nesta altura já tinha acabado a universidade e sabia que a WNBA estava a começar. O meu sonho era vingar na WNBA, ser All-Star — uma pessoa começa a sonhar e quer o anel, um campeonato. De certeza que nessa altura já pensava nisso, mas não sabia se iria acontecer. Ao ser escolhida para Sacramento [Monarchs], recordo-me perfeitamente de pensar: lá vou eu outra vez para o outro lado dos Estados Unidos, ainda fico mais longe de Portugal e da família, mas ter a noção que se havia sido escolhida como n.º 2 do draft, quase fui a n.º 1 — ainda bem que não fui —, e os sonhos eram grandes. Sempre para ganhar e ter sucesso individual e colectivo.
O meu irmão sempre quis ir para os Estados Unidos mas acabou por não ir e depois passou-me o sonho. Até porque já estava a jogar profissionalmente em Portugal.
— Aí estão várias citações suas. Uma diz que o seu interesse pelo basquetebol «é uma coisa de família». Teria sido mais difícil, «against all odds», sem o apoio do seu pai, João, da mãe, Helena, e do irmão Paulo. Porque, creio, que também foi para os Estados Unidos para cumprir um sonho dele.
— Sim, o meu irmão sempre quis ir para os Estados Unidos mas acabou por não ir e depois passou-me o sonho. Até porque já estava a jogar profissionalmente em Portugal. Se calhar, se o meu pai jogasse futebol, teria jogado futebol, se fosse natação… Decididamente basquete era uma coisa de família. Dizem que filho de peixe sabe nadar e tanto o meu pai como o meu irmão passaram-se esse gosto pela modalidade.
Fui abordada pelos Estados Unidos para talvez competir por eles, mas como já havia jogado na seleção portuguesa, era necessário um aval da FIBA. Era uma coisa complicada e, sinceramente, nunca tentei ir ao máximo nesse objetivo porque sou tão portuguesa no coração
— Regressando ao livro da WNBA, diz que se alguma vez ganhasse uma medalha olímpica: «acho que iria beijá-la todos os dias para ter a certeza realmente que a tenho». Mais do que a medalha, faltou a participação nos Jogos Olímpicos?
— É verdade, mas também sabia que era um sonho difícil, até para nos qualificarmos para um Europeu, que aconteceu este ano, quanto mais os Jogos Olímpicos. A não ser que fossemos um país organizador, que era quase impossível. Portanto, sabia que era um sonho que tinha, fui abordada pelos Estados Unidos para talvez competir por eles, mas como já havia jogado na seleção portuguesa, era necessário um aval da FIBA. Era uma coisa complicada e, sinceramente, nunca tentei ir ao máximo nesse objetivo porque sou tão portuguesa no coração — embora hoje tenha dupla nacionalidade —, que se calhar foi um sonho que ficou por concretizar. Mas estou bem. Sempre fui portuguesa e a única seleção que representei foi a de Portugal.
— Nunca ficou a pensar: se me tivesse tornado americana… tinha ido ao Jogos? Porque os Estados Unidos estavam interessados em si.
— Pensei, não vou dizer que não, mas não foi um assunto ou sonho que acho que ficou por cumprir e não me chateia não ter tentado mais. Estou bem, em paz como tudo se desenrolou.
— E foi por causa desse sonho olímpico que foi ver vários Jogos, assistir as suas colegas e amigas americanas a jogar para poder estar perto desse ambiente?
— Quando não se pode jogar, o mais perto que se pode estar é como espectador, poder participar nos Jogos Olímpicos como espectador e eles são o máximo que qualquer atleta pode querer atingir, por isso estar na bancada só a ver já foi suficiente para mim.
Este verão, assisti ao EuroBasket, tanto masculino como feminino. Vejo que Portugal continua a andar para a frente, tanto nas camadas jovens como na Seleção feminina e masculina e para mim é sempre um orgulho.
— Hoje em dia, quando vê a Seleção Nacional feminina, recuando à altura em que jogava, seria algo que a faria ambicionar com o Europeu e até a hipótese de tentar lutar por uma presença no Mundial?
— Sim, foi com muito orgulho que, este verão, assisti ao EuroBasket, tanto masculino como feminino. Vejo que Portugal continua a andar para a frente, tanto nas camadas jovens como na Seleção feminina e masculina e para mim é sempre um orgulho. Como já disse, sou portuguesa ao máximo, o coração é todo português e ter essa oportunidade de as ver a competir, estarem num Europeu e a ganhar jogos, foi uma coisa bonita de se ver.
Agora é mais tático, mais bonito de se ver. As jogadoras são versáteis, vê-se basquetebolistas a atuar em várias posições. Definitivamente, a WNBA e o basquete feminino, não só na América mas a nível mundial, está no bom caminho, continua a crescer.
— Em 1998, quando entrou para a WNBA, existiam 10 clubes. Este ano houve 13, e na próxima temporada serão 15. É uma WNBA muito diferente daquela onde jogou, até porque continua ligada a ela?
— Está mais competitiva, as jogadoras estão melhores em termos técnico-táticos. Como disse, agora as miúdas com 12 anos começam a contratar treinadores, preparadores físicos e não sei mais o quê para se prepararem. O nível é melhor. Se calhar, no meu tempo era um bocadinho mais físico. Até comparando com a NBA nota-se a mesma coisa, era bastante mais físico. Agora é mais tático, mais bonito de se ver. As jogadoras são versáteis, vê-se basquetebolistas a atuar em várias posições. Definitivamente, a WNBA e o basquete feminino, não só na América mas a nível mundial, está no bom caminho, continua a crescer.
Pela minha maneira de jogar, hoje em dia podia haver muitos passes ou jogadas que se tornariam virais. Não joguei com redes sociais. E o que é que eu vou fazer? Nada, já passou.
— Quando ouvimos as antigas estrelas da NBA, há ali um problema, não sei se da idade ou qualquer outra coisa, e dizem: ah, se fosse agora marcava não sei quantos pontos, fazia isso tudo... Pensa também que se estivesse lá agora fazia isto ou aquilo, ou nem por isso?
— Não, penso que é a evolução das coisas. Por exemplo, pela minha maneira de jogar, hoje em dia podia haver muitos passes ou jogadas que se tornariam virais. Não joguei com redes sociais. E o que é que eu vou fazer? Nada, já passou. Há etapas, houve jogadoras antes de mim, como a Nancy Lieberman, a Cheryl Miller, entre outras, que tiveram um grande impacto a nível mundial e não tiveram a oportunidade de estar na WNBA. Portanto, estou contente de ter sido uma das pioneiras da liga. As etapas são para acontecer e estou feliz onde estou. Porque é que vou chorar sobre o leite derramado? Não vale a pena.
Sei que as jogadoras estão preparadas para exigir aquilo que acham que merecem e merecem aquilo que estão a exigir. Mas se a WNBA vai ceder ou não, não sei. Penso a WNBA precisa mais das jogadoras do que as jogadoras precisam da WNBA.
— Até porque, hoje em dia é agente, já lá vão 13 anos, vai ser inevitável dia 1 de novembro o lockout da WNBA e teme que isso vá afetar a próxima época? Este inverno será um período de rutura contratual. São dores de crescimento de uma liga que passou a ter luxos que não tinha, as jogadoras também passaram a ter coisas que não tinham e uma projeção que não existia?
— Dia 31 de outubro é o último dia do contrato [coletivo de trabalho] e vai haver uma extensão de 30 dias. Então, temos 30 dias para chegar a um acordo, que não sei, sinceramente, se acontecerá ou não. Sei que as jogadoras estão preparadas para exigir aquilo que acham que merecem e merecem aquilo que estão a exigir. Mas se a WNBA vai ceder ou não, não sei. Penso a WNBA precisa mais das jogadoras do que as jogadoras precisam da WNBA. Existem outras ligas, aqui na Europa, Austrália, China. Há a Rival League, que é em Miami, durante dois meses, há Athletes Unlimited Pro, portanto, há maneiras das jogadoras continuarem a jogar profissionalmente. Ninguém quer que aconteça um lockout, mas sei que estão conscientes daquilo que merecem e, desta vez, não vão vacilar.
As Golden State Valkyries estão, creio, avaliadas em $500 milhões [€430 milhões]. São a equipa mais valiosa da WNBA, o que significa que apostar no basquete feminino e num clube da WNBA é um investimento. Que pode haver retorno, não é um ato de caridade. Acho que esses dias já acabaram
— Os clubes que entram para o ano na WNBA são Portland e Toronto. Falta uma equipa em Sacramento?
— Agora com a equipa de Golden State [Valkyries], que está geograficamente perto, não sei se alguma vez vamos ter outra equipa em Sacramento. Mas, por exemplo, esse clube, neste momento, é o mais valioso da WNBA e esta época foi o seu primeiro ano. As Golden State Valkyries estão, creio, avaliadas em $500 milhões [€430 milhões]. São a equipa mais valiosa da WNBA, o que significa que apostar no basquete feminino e num clube da WNBA é um investimento. Que pode haver retorno, não é um ato de caridade. Acho que esses dias já acabaram e neste momento as jogadoras sabem-no. Os pavilhões estão cheios, vê-se toda a gente a comprar merchandising, as jogadoras sabem o valor que têm e vão exigi-lo.
— Como é quando vai a Sacramento, pois quando se retirou e passou a ser agente também deixou de lá viver e foi para Miami? Aquela cidade marcou-a muito, andava na rua e era reconhecida. Foi lá que conseguiu o título mais importante que ganhou na carreira, o da WNBA, não é?
— Sim, acho que sim. Jogamos sempre para vencer títulos e poder ganhar o da WNBA não é uma coisa fácil. E consegui-lo com a equipa e em casa, em frente aos nossos fãs, foi especial. Ir a Sacramento é quase como ir às traseiras [de onde cresceu e estava o campo onde jogava]. É uma nostalgia, alegria e felicidade. É saber que foi outra etapa da vida que me deu bastantes alegrias. É sempre bom voltar.
Se calhar para vocês tenho um palmarés grande, mas para entrar para o Naismith [Hall of Fame] é preciso mesmo ser top do top
— Entrou para o Women's Basketball Hall of Fame, para o Virginia Basketball Hall of Fame, este ano para o FIBA Hall of Fame. Cada vez que a NBA faz anos, 20, 25… está entre as melhores jogadoras da história. Só falta mesmo o Basketball Hall of Fame. Eles não estão a tardar um bocadinho a apresentar o convite para entrar?
— É difícil. Se calhar para vocês tenho um palmarés grande, mas para entrar para o Naismith [Hall of Fame] é preciso mesmo ser top do top e não joguei nos Jogos Olímpicos, não tenho uma medalha olímpica... É uma coisa que não é tão óbvio…
Se acontecer, incrível, e se não acontecer, a minha vida continua e estou satisfeita mesmo com aquilo que realizei. É uma coisa que está completamente fora do meu controle. Só ser nomeada, sinceramente, já é uma honra incrível
— Sobretudo não sendo americana, porque nas eleições da WNBA é sempre a única europeia.
— Bem, então é assim, eu não voto, não tenho voto na matéria, tudo o que podia fazer para estar lá já fiz. Está completamente fora das minhas mãos. Se acontecer, incrível, e se não acontecer, a minha vida continua e estou satisfeita mesmo com aquilo que realizei. É uma coisa que está completamente fora do meu controle. Só ser nomeada, sinceramente, já é uma honra incrível e sabia que não ia acontecer este ano porque estava a Sue Bird, a Maya Moore, a Sylvia Fowles, que têm um palmarés muito melhor do que o meu e também não vão pôr cinco jogadoras da WNBA no Hall of Fame na mesma época. É uma coisa com a qual estou completamente em paz.