No final do jogo em Alvalade, Maradona vestiu-se à Sporting com a camisola do capitão Carlos Manuel - Foto: A BOLA

Quando o Sporting jogou contra Deus

Maradona gordo e barbudo em Alvalade e de cara limpa em Nápoles. Uma história com 36 anos contada por A BOLA com a ajuda dos então leões Ivkovic e Manuel José e do internacional brasileiro napolitano Careca

NÁPOLES — Naquele dia Alvalade encheu não apenas para ver o Sporting. Naquele dia 14 de setembro de 1989 Alvalade encheu também para ver o Sporting mas sobretudo para ver Maradona. Nem sequer foi para ver o Nápoles, foi para ver Deus. E, sejamos justos, aquele Nápoles não era só Maradona e sobretudo naquele dia até era pouco Maradona… mas são poucos os que têm a oportunidade de ver Deus e Ele ia estar na casa do leão. Um Deus gordo e barbudo mas Deus. E no final Deus vestiu a camisola do Sporting.

O Sporting joga esta quarta-feira com o Nápoles na 2.ª jornada da UEFA Champions League, será o terceiro jogo entre leões e napolitanos, 36 anos depois do famoso e glorioso Nápoles da década de 80 lhe ter calhado em sorte na 1.ª eliminatória da então Taça UEFA. 0-0 em Lisboa, 0-0 no então Estádio San Paolo, hoje Diego Armado Maradona, derrota leonina no desempate por penáltis.

Como referimos, aquele Nápoles não era só Maradona. Já não era o da tripla MA-GI-CA, porque o do meio, GIordano, já tinha saído para o Ascoli e em 1989/1990 já estava até no Bolonha, mas continuava MAradona e CAreca, estrela brasileira que nos conta peripécias da eliminatória. Astro brasileiro havia outro, Ricardo Rogério de Brito, loiro que por isso ganhou a alcunha de Alemão. Mas também os italianos Ciro Ferrara, Fernando de Napoli, Andrea Carnevale orientados pelo treinador Alberto Bigon… Mas a Alvalade foi tudo ver Maradona.

Maradona estava gordo e barbudo... - Foto: A BOLA

Eram 15h00 daquela quinta-feira e já as escadas de acessos à bancada nova do velhinho Alvalade estavam repletas de sportinguistas. Outros tempos e condições e a necessidade de ir cedo para ocupar um bom lugar assim que as portas abrissem às 18h00, três horas antes do apito inicial. Tudo para ver o Sporting… e Maradona. A receita de bilheteira estava garantida e era recorde: 200 mil contos, €1 milhão.

Maradona e... Cicciolina

O Nápoles não era só Maradona mas foi com Maradona que pela primeira vez foi campeão de Itália em 1986/1987 e seria com Maradona que no final dessa época em que defrontou o Sporting na Taça UEFA haveria de conquistar o Scudetto pela segunda vez — sem Maradona, nunca antes e outras vezes só 34 anos depois, em 2023, e agora na última temporada. Mas Maradona andava desaparecido e ia reaparecer em Alvalade, mais um motivo para lá ir…

Não foi com o 10 que D10S jogou. Numa altura em que não havia números fixos, Maradona saiu do banco com número de suplente, o 16 - Foto: A BOLA

De facto, o astro argentino não tinha ainda aparecido para a nova época, andava perdido de férias na Argentina e fez em Lisboa o primeiro jogo da temporada. Não foi titular, jogou os últimos 20 minutos e foi só aí que o jogo começou. «Ao minuto 70 parou tudo quando aquele homem anafado e de barba grande entrou», lembra-nos Ivkovic, então o guarda-redes dos do Sporting

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Gordo, barbudo, ali estava Deus, ainda nem tinha 29 anos — quando foi aquecer junto a um dos topos todos se manifestaram, aplaudido por uns, assobiado e insultado por outros, admirado por todos. Contam as crónicas daquele jogo que durante 20 minutos Maradona nem esteve em campo, em péssima condição física acabou por ver os leões terem nesse período a melhor fase do jogo. Mas no fim 0-0, terminava série de 16 jogos europeus dos verdes e brancos sempre a marcar em casa, desde 3 de novembro de 1982, 41 golos marcados e só 10 sofridos.

«Naqueles 20 minutos ele não fez nada, andou muito devagar, mas sabíamos que a qualquer momento podia ter um golpe genial», conta-nos Manuel José, o então treinado do Sporting agora com 79 anos.

Maradona no banco de suplentes de Alvalade

Ainda dentro do estádio, jogo já terminado, ninguém se atreveu a sair antes de Maradona e viu-se Deus vestir a camisola do Sporting, de sorriso rasgado, imagem mítica para os sportinguistas do argentino com a camisola do capitão Carlos Manuel no corpo.

Os onzes de Alvalade
SPORTING: Ivkovic; João Luís, Luisinho, Venâncio e Leal; Douglas; Carlos Manuel, cap., Carlos Xavier (Ali Hassan, 68') e Valtinho (Fernando Gomes, 35'); Marlon Brandão e Paulinho Cascavel. NÁPOLES: Giuliani; Renica, cap.; Baroni, Crippa e Ferrara; Alemão e Fusi; De Napoli, Mauro (Maradona, 70') e Carnevale; Careca

Já fora do Estádio, a multidão manteve-se à espera para ver Maradona passar e ainda arrancou sorrisos a Alemão por causa de um cartaz com a na altura famosa atriz italiana de filmes para adultos e deputada do Parlamento de Itália pelo Partido Radical, Cicciolina.

Manuel José sem marcações

13 dias depois, a 27 de setembro, já houve Maradona — muito menos gordo e sem um único pelo no rosto. E durante 120 minutos em campo, porque aos 90’ estava tudo a zeros e aos 120 também, foi preciso desempatar nos penáltis. «Não tivemos sorte no sorteio mas a ideia era clara, todos pensámos: vamos a eles», lembra Manuel José. 

Manuel José era o treinador do Sporting, aqui com Fernando Gomes, que falhou penálti em Nápoles - Foto: A BOLA

«Não era só Maradona, era o Alemão, o Careca… Quando foi o jogo em Nápoles disse aos jogadores que não valia a pena fazer marcações individuais, eles eram melhores do que nós e mesmo marcando Maradona em cima eles continuavam a ser melhores. Então, fizemos ali uma espécie de zona mista, quando a bola ia para o Maradona, o jogador que estava por perto preocupava-se com ele», explica-nos Manuel José e ressalva: «Disse aos jogadores para quando o Maradona aparecesse na zona deles o marcarem pela esquerda mas, num momento do jogo, ele apareceu na zona do Valtinho e o Valtinho, como lhe pedi, marcou-o pela esquerda, só que o Maradona, pela direita, sacou um passe de letra com o pé direito e isolou o Alemão… Valeu-nos o Ivkovic. Só disse que a um génio daqueles não vale a pena pensar em marcações!»

Disse aos jogadores para quando o Maradona aparecesse na zona deles o marcarem pela esquerda mas, num momento do jogo, ele apareceu na zona do Valtinho e o Valtinho, como lhe pedi, marcou-o pela esquerda, só que o Maradona, pela direita, sacou um passe de letra com o pé direito e isolou o Alemão… Valeu-nos o Ivkovic. Só disse que a um génio daqueles não vale a pena pensar em marcações! (Manuel José)

A aposta com Ivkovic

Para o fim da eliminatória, a famosa aposta e Ivkovic com o argentino. «A minha história com o Maradona vinha do Mundial de Juniores de 1979. No jogo entre a Argentina e a Jugoslávia comecei na brincadeira com ele, percebi que nos cantos curtos ele chutava com a parte de fora do pé, levei o jogo a dizer-lhe: miúdo, não faças isso...», conta-nos o guarda-redes,  65 anos.

Ivkovic era o guarda-redes do Sporting - Foto: A BOLA

«Quando jogámos com o Nápoles ele já não devia lembrar-se disso», reconhece Ivkovic, que logo relembra o episódio dos penáltis. «O Maradona quando foi buscar a bola para marcar o penálti prendeu-a com os dois pés e num ápice fê-la saltar rápida e direitinha para as mãos. Fui ter com ele: queres apostar que não marcas? O árbitro estava ali ao lado e até se riu. Então, Diego, queres apostar ou não? 100 dólares… Ele disse que sim», explica Ivkovic: «Defendi. Ele ficou fulo, fui outra vez ter com ele e ele nem me olhou nos olhos mas insisti e disse-me que pagava os 100 dólares.»

O Maradona quando foi buscar a bola para marcar o penálti prendeu-a com os dois pés e num ápice fê-la saltar rápida e direitinha para as mãos. Fui ter com ele: queres apostar que não marcas? O árbitro estava ali ao lado e até se riu. Então, Diego, queres apostar ou não? 100 dólares… Ele disse que sim. Defendi. Ele ficou fulo, fui outra vez ter com ele e ele nem me olhou nos olhos mas insisti e disse-me que pagava os 100 dólares (Ivkovic)

No jogo, Ivkovic e Carlos Manuel foram os melhores leões, enquanto Alemão foi o melhor na equipa italiana. Mas no fim das contas, ganhou o Nápoles 4-3 nos penáltis — Ivkovic defendeu remate de Crippa; Giuliani deteve tiro de Luisinho; Careca fez 1-0; Douglas empatou; Mauro fez 2-1; Marlon Brandão rematou ao poste direito; 3-1 por Baroni; 3-2, por Paulinho Cascavel; Ivkovic defendeu remate de Maradona; Carlos Manuel fez 3-3. Nova série de cinco: Ferrara fez 4-3; Fernando Gomes atirou à barra.

Os onzes no San Paolo
NÁPOLES: Giuliani; Fusi; Ferrara, Baroni e Francini (Corradini, 116'); De Napoli (Mauro, 91 '), Alemão e Crippa; Maradona, cap., Careca e Carnevale. SPORTING: Ivkovic; Oceano, Luisinho, Venâncio e Leal; Carlos Manuel, cap. e Valtinho (Ali Hassan, 91'); Marlon Brandão, Douglas e Lima (Paulinho Cascavel, 116'); Fernando Gomes

«É tramado, os dois mais experientes falharam. O Luisinho, que era um central extraordinário, daquela seleção do Brasil de 1982, e o Fernando Gomes. Aliás, o Gomes nem queria marcar o penálti. Com a experiência que tens não queres marcar? Marcas, macas, disse-lhe. Acabaram por falhar os dois», lamenta Manuel José.

É tramado, os dois mais experientes falharam. O Luisinho, que era um central extraordinário, daquela seleção do Brasil de 1982, e o Fernando Gomes. Aliás, o Gomes nem queria marcar o penálti. Com a experiência que tens não queres marcar? Marcas, macas, disse-lhe. Acabaram por falhar os dois (Manuel José)

Mas ainda havia mais Maradona. «No balneário, estávamos todos tristes, cabisbaixos… E de repente aparece-nos o Maradona de chinelos e em tronco nu com uma nota de 100 dólares na mão. Portero, portero, gritava ele. Ganhaste os 100 dólares mas eu ganhei o jogo! Estávamos tristes mas já não havia nada a fazer e perante aquilo tivemos de nos rir», justifica Manuel José. Afinal, seria difícil ganhar quando se joga contra Deus.

No balneário, estávamos todos tristes, cabisbaixos… E de repente aparece-nos o Maradona de chinelos e em tronco nu com uma nota de 100 dólares na mão. Portero, portero, gritava ele. Ganhaste os 100 dólares mas eu ganhei o jogo! Estávamos tristes mas já não havia nada a fazer e perante aquilo tivemos de nos rir (Manuel José)

Foram dois empates mas o Nápoles é que seguiu em frente. Mas a custo, tanto que Maradona, assim que terminou o desempate e falou à Rai 2 ainda em pleno relvado com os 50 mil adeptos no estádio a que viria a dar o nome, eufóricos, reconheceu que foi «uma partida duríssima». «Falhei outra vez um penálti mas vencemos e creio que merecidamente. Parecia um jogo sem fim. sim, tão difícil que não conseguíamos terminar o jogo» — grande elogio de Maradona para aquele Sporting.

Careca aponta à final

António de Oliveira Filho, o Careca do Nápoles, 63 vezes internacional pelo Brasil e uma das principais figuras da equipa italiana que naquele mês de setembro de 1989 defrontou duas vezes o Sporting.

Careca, Maradona e Alemão, o trio de estrangeiros do Nápoles - Foto: A BOLA

«Foram jogos duros, truncados, lembro bem», conta o antigo avançado a A BOLA. «O Sporting também tinha uma equipa muito boa, com muitos brasileiros também. O Luisinho, para mim, um dos zagueiros grandes que nós tivemos no Brasil. O grande Luisinho! Tivemos dificuldade tanto no primeiro jogo, que foi 0-0, como no segundo. Foi decidido nos penáltis, onde até Maradona errou!», destaca Careca, hoje com 64 anos, acrescentando nomes de leões com qualidade: «O Carlos Manuel também, o Douglas, o Marlon [Brandão], o Paulinho Cascavel... enfim, jogadores de qualidade, de inteligência também, de um potencial técnico muito bom e com grande capacidade física. Ah, e havia o goleiro, era estrangeiro não? Isso, o Ivkovic! Nós tínhamos uma grande equipa mas tivemos muitas dificuldades para eliminar o Sporting

Foram jogos duros, truncados, lembro bem. O Sporting também tinha uma equipa muito boa, com muitos brasileiros também. O Luisinho, para mim, um dos zagueiros grandes que nós tivemos no Brasil. O grande Luisinho! Tivemos dificuldade tanto no primeiro jogo, que foi 0-0, como no segundo. Foi decidido nos penáltis, onde até Maradona errou (Careca)

Careca reconhece que, na altura, a equipa sentiu «bastante a falta do Maradona» e viajando até aos dias de hoje aponta como «favorito o Nápoles». «Pelo que vem fazendo nos últimos anos, no campeonato e pelas contratações. São grandes jogadores, né? De Bruyne, o próprio Lukaku, enfim, o Anguissa... É o melhor momento do Nápoles para tentar chegar a uma final. Talvez tentar buscar um título da Champions», deseja o antigo internacional brasileiro.

De San Paolo a Diego Armando Maradona

Estádio Diego Armando Maradona tem capacidade para quase 55 mil espectadores - Foto: IMAGO

Quando do Sporting jogou em Nápoles em setembro de 1989 o Estádio era o San Paolo. Quis o destino que haveria de ganhar o nome do Deus que o eternizou, Diego Armando Maradona, o astro que passou pelo clube e evangelizou a cidade à religião maradoniana. Em dezembro de 2020, a Câmara Municipal de Nápoles aprovou a mudança de nome do recinto numa homenagem ao ex-futebolista argentino, que morreu no dia 25 de novembro do mesmo ano, aos 60 anos. Recordado pela autarquia napolitana como «o maior jogador de futebol de todos os tempos», engrandeceu durante sete épocas, de 1984/1985 a 1990/1991, com o seu «imenso talento e magia» o clube, e que recebe em troca de toda a cidade «um amor eterno e incondicional», bem explícito em toda a cidade mas sobretudo nas ruas pintadas do Bairro Espanhol, exemplo máximo da devoção local ao seu Deus. «Maradona encarnou o símbolo da redenção de uma equipa que, nos anos mais sombrios, demonstrou que é possível levantar-se, vencer e triunfar, ao mesmo tempo que oferece uma mensagem de esperança e beleza a todos», referia a resolução da autarquia na missiva em que se explicava a mudança do nome de um recinto inaugurado em 1959 e atualmente com capacidade para quase 55 mil espectadores. Antes de ser Diego Armando Maradona, era San Paolo, porque segundo reza a lenda o apóstolo, quando chegou à atual Itália, aportou na área circundante de Fuorigrotta, na parte ocidental da cidade.

Ver Nápoles e depois morrer

Nápoles, o golfo e o Vesúvio

É o que se diz de Nápoles. Ver Nápoles e depois morrer, frase eternizada por Goethe em Viagem a Itália, obra escrita a partir dos diários de autor alemão, uma descrição da viagem que o autor empreendeu àquele país entre 1786 e 1788. O escritor, fascinado pelo contraste entre beleza, caos, história e vida popular da cidade, usou a frase para resumir quem contempla Nápoles atinge tal plenitude que mais nada resta desejar, podendo morrer feliz. O ditado ganhou força e hoje é muitas vezes usado por quem visita a capital da região de Campânia, com o vulcão Vesúvio com vista para a Golfo de Nápoles.