António Gaspar «foi o pioneiro da profissão num contexto em que a fisioterapia ainda era pouco reconhecida no país» (Foto: A BOLA)

O verdadeiro 12.º jogador

Esta Tribuna Livre, espaço de opinião em a A BOLA, é da responsabilidade de Sérgio Loureiro Nuno, fisioterapeuta olímpico dedicado a performance e recuperação de lesões desportivas; professor universitário; doutorado em Ciências da Saúde e Motricidade Humana

No futebol, muito se fala sobre táticas, treinadores e jogadores dentro das quatro linhas. No entanto, há uma figura simbólica que, embora não toque na bola, tem um papel fundamental no desempenho das equipas: o 12.º jogador. Este termo é utilizado normalmente em referência aos adeptos, pelo impacto que podem ter na equipa com cânticos e incentivo extra, que podem motivar jogadores e intimidar adversários. Para quem diariamente está em contacto com a equipa, percebe que o 12.º jogador pode muito bem ser referência para descrever profissionais que desempenham papéis fundamentais fora das quatro linhas. Entre eles, o fisioterapeuta.

O Dia Mundial da Fisioterapia é celebrado todos os anos, desde 1996, a 8 de setembro. Provavelmente ainda antes dessa data, sabia-se que em desporto de alta competição, a fisioterapia assume um papel estratégico e essencial. Os atletas de elite vivem numa batalha constante contra o desgaste físico, lesões desportivas e pressão por resultados. O Dia Mundial da Fisioterapia convida-nos a refletir sobre a importância de investir na fisioterapia como parte integrante da saúde e da promoção do desporto para todos.

O fisioterapeuta no desporto intervém em populações de todas as idades e com diversos níveis competitivos. Os seus objetivos passam por: estabelecer um programa de recuperação adequado; executar mensurações objetivas e sistemáticas registando os dados; desenvolver e implementar testes funcionais envolvendo estruturas que já tenham sido lesionadas; promover o retorno à atividade no mais curto espaço de tempo sem risco de recidiva ou exacerbação dos sintomas.

Além disso, deve ter a capacidade de promover a utilização de equipamento desportivo específico, reconhecer os quadros clínicos de lesões e patologias que requeiram cuidados médicos de emergência, prestar primeiros socorros em situações de urgência, determinar a extensão, localização, gravidade e possíveis sequelas de uma lesão, efetuar uma correta avaliação subjetiva e objetiva, recorrer a testes de tensão seletiva e a testes específicos, bem como compreender e interpretar os exames complementares de diagnóstico.

Os fisioterapeutas do desporto devem também desafiar e avaliar a sua prática e muitas vezes desenvolver novos conhecimentos a partir da investigação, favorecendo atualizações ao nível da sua prática clínica. O conhecimento profundo de determinada área é um dos fatores que asseguram uma boa prática profissional.

Em Portugal, a fisioterapia desportiva em alta competição tem vindo a ganhar reconhecimento e investimento, acompanhando a crescente participação portuguesa em eventos internacionais. Cada vez mais atletas contam com fisioterapeutas especializados como parte integrante da sua equipa técnica, percebendo que estes profissionais são cruciais para manter o corpo competitivo e resiliente.

A evolução do conhecimento científico e das práticas desportivas exige profissionais atualizados e especializados, capazes de responder às necessidades de uma população ativa e diversificada. O pioneiro da profissão num contexto em que a fisioterapia ainda era pouco reconhecida no país, foi António Gaspar. Estabeleceu uma carreira sólida onde sempre foi responsável pelo tratamento de atletas de elite e onde participou ativamente em empreendedorismo na área clínica. Pelo seu exemplo, levou com que outros fisioterapeutas quisessem seguir um trajeto semelhante e com isso, elevassem a qualidade dos cuidados prestados.

Outro exemplo de sucesso em Portugal, refere-se ao atual bastonário da Ordem dos Fisioterapeutas que não se limita a destacar determinada área e estende o movimento humano como a principal capacidade que temos e que o fisioterapeuta consegue potenciar. Cada vez mais portugueses procuram uma vida ativa, seja para melhorar a saúde, seja por gosto ou desempenho competitivo.

Aliás, não faltam bons exemplos. Há poucos anos atrás, enquanto assistia ao emocionante dérbi entre Benfica e Sporting que decidia a Supertaça de futsal, houve um lance onde um jogador sportinguista se magoou na cabeça e foi o fisioterapeuta das águias, Rafael Cabral, que prontamente assistiu o jogador do clube adversário. Resolvido o problema físico, o árbitro da partida exibiu o cartão branco ao fisioterapeuta, que visa premiar atitudes de fair-play.

Lá fora, também existem histórias que dificilmente se esquecem. Walter Ferreira, fisioterapeuta da seleção uruguaia de futebol, foi responsável, em 2014, pelo tratamento a uma lesão meniscal do joelho esquerdo a Luís Suárez, na altura a estrela celeste. O Uruguai estava selecionado no campeonato mundial no chamado grupo da morte, no qual estavam 3 campeões: Itália, Inglaterra e o Uruguai.

Perdeu o primeiro jogo para a Costa Rica, para a surpresa de todos, e no jogo seguinte contra a Inglaterra, venceu por 2-1, com dois golos de Suaréz, apenas 27 dias após a cirurgia ao joelho. Isto foi visto como um trabalho de excelência do fisioterapeuta. Walter Ferreira, ainda em tratamento de quimioterapia por um cancro linfático, linfoma não-Hodgkin, interrompeu o seu tratamento para ajudar na recuperação do jogador.

Apesar das condições adversas, o fisioterapeuta foi autorizado a viajar com a seleção do Uruguai para o campeonato do Mundo e foi ali que continuou a acompanhar Suárez na sua reabilitação. Infelizmente, passado 2 anos, Walter Ferreira perdeu a sua batalha contra o cancro, mas Suárez prometeu nunca se esquecer de toda a sua ajuda e imortalizar a sua competência ao longo da vida. Aos 38 anos, ainda joga.

Nem sempre isso acontece, visto que existem muitos craques que acabaram precocemente a sua carreira. Marco van Basten, lendário atacante holandês teve repetidas lesões no tornozelo e teve de se retirar aos 28 anos, perto do auge da sua carreira.

Ronaldo, o Fenómeno, cuja carreira misturou glória, desafios e muitas lesões, podia ao dia de hoje ter ainda mais vitórias no seu currículo não fossem as lesões. Durante um jogo em 1999, enquanto representava o Inter, sofreu uma rotura no ligamento cruzado anterior do joelho direito. Em 2000, teve uma recidiva e as cirurgias, bem como a longa reabilitação colocaram a sua carreira em risco.

Apesar das adversidades, Ronaldo e a sua equipa de fisioterapia recusou-se a desistir e a sua determinação reescreveu mais uma vez a sua história. Durante o Campeonato do Mundo de 2002, teve um regresso que provou que ainda era um dos melhores do mundo, onde liderou a canarinha no Mundial da Coreia do Sul e Japão, com oito golos no torneio, incluindo dois na final contra a Alemanha, tendo sido eleito o melhor jogador da prova.

Num dia carregado de simbolismo profissional, estas histórias servem não apenas para o desporto, mas para a sociedade em geral. Deve-se comemorar sempre a competência e a atual longevidade dos atletas estará também relacionada com o verdadeiro 12.º jogador.