Cinco anos na equipa B do Benfica e tanto talento

Hélder Cristóvão: da oportunidade que não aparece na Liga aos diamantes lapidados no Benfica B

Depois de três anos no Penafiel, espera que o telefone toque. Fala da impressão digital que deixou em alguns dos craques que apanhou na equipa B do Benfica

— Está sem clube. Como ocupa o tempo?
— Vendo alguns bons jogos. Este momento, permite-me selecionar os jogos que quero ver, o que quero aprender e trazer para mim como treinador. É um pouco isso — muita pesquisa e observação, rever coisas dos últimos três anos de Penafiel, muitos treinos, comportamentos, entrevistas [para fazer correções]. É importante estarmos preparados para abraçar um projeto a qualquer momento . Neste momento, proponho-me encontrar um projeto que me satisfaça e em que consiga acrescentar qualquer à equipa que me vai contratar.

— O telefone já tocou?
— Vai tocando, vai tocando. Mas estamos à espera da chamada certa.

— Número com indicativo português ou de outros países?
— Com vários indicativos, mas ainda nada que me tivesse cativado a 100 por cento para aceitar. É um momento em que precisamos de alguma calma. Há alguma ansiedade porque queremos trabalhar, mas precisamos de calma, porque o próximo passo tem de ser bem dado. Toda a gente diz isso, é um clichê, mas é verdade. Estive duas épocas e meia no Penafiel, foram 98 jogos na Liga 2, portanto há que ter alguma calma. Vou confessar que fiquei muito surpreendido por não ter entrado neste mercado de trabalho, até por tudo o que tinha feito no Penafiel, principalmente na primeira volta. Foi fantástica, com uma equipa que projetámos para estar no 12.º/13.º lugar ou mesmo a festejar a permanência nas últimas jornadas. Conseguimo-lo em janeiro ou início de fevereiro. A expectativa era alta e fiquei surpreendido não ter entrado.

— Não só por esse trabalho no Penafiel, que acaba por validar aquilo que é como treinador, mas também pelo percurso que já teve, sente que teve as oportunidades que acredita que deveria merecer?
— Não.

— Porquê?
— Não sei, não sei. Talvez tenha ficado dois anos a mais na equipa B do Benfica, quando houve oportunidades para mudar e tentar explorar outros campeonatos, quer de I Liga, quer de fora. O compromisso que tinha com o Benfica, o presidente e os jogadores era continuar a fazê-los crescer e, por isso, aceitei a renovação de três anos. Se calhar, esse período não me permitiu entrar noutros projetos. Agora, vendo um pouco à distância, pode ser um contra-senso, outros com menos tempo conseguiram entrar noutros projetos. Não consigo explicar. Não sei explicar porquê. Falta-me, esencialmente, uma oportunidade na Primeira Liga. Primeiro tinha o carimbo de ser treinador de formação, depois tinha o carimbo de ter estado na Arábia e vemos que os outros vão à Arábia e vão a outros países e depois entram rapidamente no campeonato português. Falta-me esse selo da Primeira Liga para poder ser um treinador mais visível. Não mais competente, mais visível.

— Como é que se dá a entrada no Benfica?

— A entrada no Benfica dá-se pela mão do presidente Luís Filipe Vieira e do Rui Costa. Quem anunciou que iria ser o treinador equipa B foi o Rui Costa, a pedido do presidente, pela ligação que nós tínhamos e deixou-me muito satisfeito poder voltar, pela terceira vez ao Benfica, numa função diferente, numa função para a qual me tinha preparado para poder abraçar. Uma das condições era ter o quarto nível, e na altura tinha o quarto nível, para a eventualidade, como tinha acontecido com Chalana, ou seja, de poder assumir um projeto de Primeira Liga, neste caso o Benfica, a equipa principal. Tinha os requisitos — ex-jogador, quarto nível, boa relação humana com os jogadores, uma linguagem diferente, na altura o Benfica procurava uma linguagem diferente, não tão académica, mas uma linguagem que, como tinha Jesus na primeira equipa, pudesse igualar em termos de liderança, e eu preenchia os requisitos.

— Alimentou, durante esse tempo, a esperança de que isso pudesse acontecer?
— Não, sinceramente. Nunca, nunca me passou pela cabeça, até porque quem estava era o Jorge Jesus, tínhamos uma relação, e temos uma relação muito boa. Ao contrário do que se poderia dizer, tinha liberdade absoluta para poder bater-lhe à porta e trocarmos ideias. Portanto, foi um período muito bom para mim em termos de crescimento e de aprendizagem, e numa liderança diferente, sinceramente uma liderança diferente, que me deu ferramentas também para poder trabalhar da maneira como trabalho agora. Deu-me liberdade total para fazer o que entendesse, a única coisa que fomos falando e fomos sempre tendo em presente eram as bolas paradas para, no caso de algum miúdo subir à equipa principal, estar mais ou menos identificado com o que é que se fazia em termos defensivos; não ofensivos, mas em termos defensivos. De resto, a metodologia era minha e deixou-me sempre trabalhar bem.

— Olhando para esses cinco anos, que sentimento é que lhe provoca recordar esse passado?
— Orgulho e satisfação, porque também tive a sorte — e o treinador também precisa de sorte — de apanhar, se calhar, as melhores gerações do Benfica nos últimos anos, fornadas excelentes, mesmo aquela uvazinha premium, que tu chegas ali e só tens que engarrafar e não estragar. Mas por trás também há um trabalho de uma liderança, de uma envolvência, de uma metodologia. Levei para lá a minha metodologia de treino, e foi muito bem aceite. E, depois, o resto é ir recebendo, é ir dando condições aos jogadores para chegarem à primeira equipa. O grande objetivo deles era chegar à primeira equipa e estarem preparados, e foi isso que nós fomos trabalhando e fomos mexendo algumas posições dos jogadores. O Lindelof era lateral-direito, passou para central; o Semedo era 10, passou para lateral; o próprio Félix era extremo, e depois acabou a época comigo a jogar avançado; o Nuno Santos acabou a jogar por trás do ponta de lança. Vários exemplos fomos criando.

— E desses exemplos todos, onde é que vê mais a sua impressão digital?
— Se fomos ver pela globalidade, o [Nélson] Semedo, que era um jogador que estava para ser emprestado, ou ele queria sair para o Louletano. Já contei várias vezes a história. Na altura, o Cancelo estava na seleção sub-19 e a pré-época tinha começado. Não tínhamos um lateral-direito fixo ou de raiz neste caso. E comecei a olhar para o Semedo um pouco por isso também — muito rápido, muito vertical, com alguma dificuldade no último terço, porque quando começava a afunilar as decisões eram diferentes, mais pastosas, mas com espaço a decisão dele era fantástica. Comecei a pensar. Fui falar com o Rui Costa e com o presidente e propus essa ideia. E eles só disseram: ‘Mas vais pôr o Semedo…' Respondi: ‘Ele também tem uma proposta para ir para o Louletano, ir para ali ou estar aqui connosco um ano, acho que consigo convencê-lo a ser lateral-direito.' Falei com ele, ele estranhou um pouco ao início. Disse-lhe: ‘Tens aqui uma janela de oportunidade, o Cancelo ainda não está, vamos trabalhar contigo, temos jogo já na próxima quarta-feira com a seleção de sub-20, ou sub-18, no Jamor, vamos testar-te ali, vamos ver os comportamentos. Não tenhas problemas, estamos aqui para te ajudar.’ E correu muito bem. 

 — Desses jogadores todos que treinou algum deles o surpreendeu pela positiva e, ao contrário, também, alguém não correspondeu ao que pensava dele?
— Sim, vai-se projetando uma ideia. Mas eles vinham bem preparados. Não é só um trabalho meu, falo sempre nisto. Não é só um trabalho meu, é um trabalho do Benfica, de todos os treinadores e colaboradores que conseguiram escolhê-los primeiro. Depois dar-lhes condições de treino até chegar à equipa B, mas o processo de equipa B para a equipa principal é totalmente diferente do processo de júnior e sub-23. E aí eles têm de estar preparados, e muitos não conseguem, ou muitos têm um choque de metodologia, de mentalidade, de preparação, porque trabalhamos muito bem e muito forte. Ao mesmo tempo que a equipa técnica trabalha uma parte, o LAB trabalha a outra. E eles têm de estar preparados, porque são muitas horas de trabalho, muitas horas de treino. Eles têm que estar muito preparados. Não há grandes surpresas em termos daquilo que eles conseguiram fazer ou do patamar que atingiram, quase todos davam indícios de poder chegar a um nível alto. Creio que o Reinildo é a maior surpresa de todos. Aqui temos alguma culpa, mas a culpa não morre solteira. Porquê? Porque tínhamos sempre um, dois jogadores de suporte, para ajudar a crescer. Na altura, o Reinildo fazia crescer o Yuri [Ribeiro] e fazia crescer o [Pedro] Robojo, e a forma como ele treinava, a forma como ele se aplicava obrigava os outros a serem melhores. E como não foi um jogador formado localmente e já chegou com uma idade diferente, não teve, talvez da minha parte, e posso reconhecer isso, a atenção que se calhar veio a ter mais tarde. Mas era um jogador que dava sinais de ser muito competitivo e muito agressivo nas suas ações, faltava-lhe compreender um pouco o jogo e os momentos do jogo, o fechar, o bascular, essas coisas, vinha do campeonato de Moçambique. Mas acabou por fazer uma carreira que nos deixa a todos muito orgulhosos e com muito mérito dele também. Do lado positivo, todos, o Renato [Sanches] muito forte logo aos 16 anos, o [João] Félix muito forte, o Bernardo [Silva] de uma qualidade excepcional, o [João] Cancelo… até cheguei a dizer-lhe pessoalmente e ele surpreendeu-se um pouco… Foi em Braga, com o Braga B, ele estava um bocado mais tristonho, tinha feito uma semana um bocado à Cancelo, uma semana chata, e chamei-o, estávamos a jantar e disse-lhe: ‘Só tens de levantar a cabeça, porque para mim vais estar nos cinco melhores laterais do mundo. Ele respondeu: ‘Ó mister, do mundo?’

 — Cancelo também tinha uma personalidade especial?
— E era difícil. Lembro-me quando ia para a equipa principal, algumas reclamações da parte dele, às vezes na seleção. Mas eu tinha paciência, ele sabe disso, porque acima de tudo temos de olhar para o jogador e nós sabemos que não podemos desperdiçar aquele talento. O talento é tanto. Também digo isto um pouco do Félix. Quando me perguntam… o Félix vai sempre chegar, vai sempre ser o jogador que está a ser, o talento é tanto que a qualquer momento vai despontar.