Antigo central recua no tempo para falar da vitória épica do Benfica sobre o Sporting em Alvalade e de um golo que não esquecerá

Newcastle, Bobby Robson, Shearer, Ivic, 6-3, Rivaldo, Scaloni e tantas histórias

Hélder Cristóvão passa os olhos por uma carreira riquíssima

— No Newcastle foi treinado por alguém que lá é muito acarinhado e que em Portugal também foi, Bobby Robson. Como é que foi essa experiência?
— Olhe, marcou-me muito, quer a experiência lá, quer a pessoa em si do Bobby Robson.

— Porquê?

— Porque ele ligou-me a convidar-me para ir para o Newcastle.

— Em português? Ainda falava algumas coisas em português?

— Falava, falava português. Vinha de uma paragem de um ano e meio, de uma lesão gravíssima, a rotura do tendão rotuliano, não fui inscrito pelo Corunha por acordo com o clube, porque só iria recuperar em finais de outubro ou novembro. Recuperei mais cedo, no final de setembro acho que estou recuperado, já estou a treinar-me normalmente, ele soube, acho que foi através do [José] Veiga, que era o meu empresário na altura, e ligou-me, ligou-me a convidar-me para me juntar ao Newcastle naquela temporada. E tu recebes uma chamada destas de quem admiravas, quer de Portugal, quer de Espanha, joguei contra o Barcelona na altura com ele, e ele disse: ‘Quero-te aqui, filho, estás bem? Não te preocupes, a gente vai-te ajudar, vamos-te proteger.’ Eu fui, claro, e cheguei lá e tudo que ele me tinha dito ao telefone foi certinho.

— E o que é que ele tinha dito ao telefone?
— Disse que ia jogar. Já me conhecia, quer de Portugal, quer de Espanha, fomos adversários, e gostava muito de mim. Então cheguei e joguei logo o primeiro jogo contra o Tottenham. Também tive a felicidade de o Dumas estar castigado, e joguei, joguei. O Newcastle não há ganhava sete ou oito jogos, acho eu, na altura do Ruud Gullit, e depois com a transição do Bobby Robson também não ganhavam, e ganhámos. Ganhámos e ele disse: ‘Criaste-me aqui um problema. E eu: «É, pá, o que é que se passou?’ Disse-me: ‘Agora o Dumas vai voltar, mas não te preocupes, eu resolvo esse problema’. Então a forma como ele resolveu o problema foi jogar com três centrais contra o Aston Villa em Villa Park. Fui o central do meio, o Dumas jogou por um lado e o Alain Goma pelo outro. E ganhámos outra vez. E foi um período muito, muito bom.

— Ganharam um 3-0 ao Man. United.
— 3-0, sim, foi um dos melhores jogos que fizemos. 

— Do Ferguson, do Beckham, do Giggs, do Solskjaer... Foram campeões.
— Foram campeões nesse ano. Fizemos um jogo imaculado, perfeito. Transições bem feitas, uma agressividade... Lembro-me do Alan Shearer dizer: ‘Quando o jogo estiver apertado, estica’. E ele ia lá acima, parecia um animal. São recordações muito boas, de um período curto. Queriam ficar comigo. Já não fiz os últimos dois jogos, arranjámos ali uma estratégia à tuga, com o Bobby Robson. ‘Não jogas os dois últimos jogos, vamos fazer aqui um relatório’. Fizeram um relatório. Entretanto, já tinha um contrato para assinar de três anos. Fui ver casa e tudo. Enviaram a carta para o Corunha. ‘Gostamos do jogador, mas ele veio com problemas físicos. Já nem pôde participar nestes dois jogos.' E o presidente [do Corunha] disse: ‘Ele que venha.’ 

— Lendoiro?

— Lendoiro, sim. Ele que venha fazer a pré-época, vamos observá-lo aqui. Cheguei lá e já não saí. Mas depois recebi o convite formal, mesmo estando no Corunha, assinado, quer pelo Bobby Robson, quer pelo presidente, a convidar-me para fazer a pré-época com eles.

— Ainda no Newcastle, falou no Shearer. Crescemos a adorar o Shearer.

— O que é que ele ele tinha de especial? Era a finalização.

— Mas ele era um tanque, aquilo ia tudo à frente. Rematava de esquerda, de direita.
— Qualquer bola entrava. Ele também perdia muito tempo a finalizar. Perdia... isso é ganhar, não é? Ficava muito tempo a bater, quer à esquerda, quer à direita. Finalizava. Mas o jogo para eles é totalmente diferente do treino. Foi uma coisa que me marcou muito.

— Mas, por exemplo, ele no treino era calminho?
— Gostava do confronto. Não tinha muita intensidade de treino. Gostava muito só de bater a bola, de finalizar. E na altura com o Bobby Robson havia esse tipo de liberdade, quase de treino um pouco individualizado. O que é que tu precisas de fazer? O que é que tu precisas melhorar? Porque a condição física está lá. Os jogos são muito intensos, tu não perdes a condição física. E os treinos eram um ritmo médio-baixo. Ou seja, a preparação era coletiva, mas muito também individual para estar bem no jogo. E ele no jogo era uma coisa... Falo sempre disso. Parecem os bonecos animados. Bola no ar, de um momento para o outro está a bater neles, grandes duelos. E era um pouco assim.

— Esta rapaziada nova que o Hélder treina sabe, por exemplo, quem é o Shearer?
— Não devem saber.

— Queria recuar ainda mais um bocadinho. Começa no Estoril com o Fernando Santos. Como é que era o engenheiro? Nessa altura ainda não tinha 40 anos, mas já era carrancudo?
— O engenheiro era duro, mas criou-nos ali uma base, pelo menos para mim, e quase concordam, boa enquanto homens e mesmo enquanto jogadores: ensinou-nos o que é preciso saber sofrer para poder atingir algo. E sofríamos muito com ele. Ele sabe, fomos falando sobre isso. Os treinos dele agora já não encaixariam, era muito da escola de Jimmy Hagan, revia-se muito na escola da disciplina e do rigor. E treinava-se mesmo muito e muito forte. Para mim, foi ótimo porque bebi daquilo tudo e cresci naquela disciplina e naquele rigor, o que me veio a beneficiar depois quando chego ao Benfica.

— Vai para o Benfica, com Ivic, mas nessa época as coisas não correm bem. Entrou Toni que a determinada altura da época diz que tudo lhe acontece e até que se tem contratado um anão o anão crescia. Como é que foi essa época tão turbulenta?

—  Começou um pouco por aí, mas tenho que ser grato ao Ivic. Era ele o treinador e foi ele que me deu a oportunidade de jogar. Joguei sempre e cheguei como quinto central, atrás do Mozer, Paulo Madeira, William e Samuel. Vinha do Estoril, mas já era internacional, tinha jogado contra a Holanda em Faro. Chego e as perguntas eram um pouco isto: ‘Hélder, vai ser emprestado, não vai ser emprestado, como é que vê Mozer, o William, o Samuel’. E eu dizia: ‘Vou querer lutar pela minha oportunidade, estou aqui, escolhi o Benfica, quero ter a minha oportunidade.’ Fomos para a Suécia e aquilo eram dois grupos, dos possíveis titulares e dos miúdos, o Rui Costa, o João Pinto, eu o Abel Silva. Tínhamos assim um grupo. Houve um jogo em que o Mozer se lesiona e curiosamente chamaram-me para fazer esse jogo. Cheguei lá, joguei e, olha, joguei sempre. Foi o primeiro jogo de muitos, depois tivemos aqui a Pepsi Cup, com Real Madrid, no Estádio da Luz, joguei e fiz 33 jogos em 34.

— Na época seguinte, foi campeão.

— Campeões.

— Num contexto de dificuldade e óbvio que é marcado pelo 6-3.

— Muita dificuldade, mas o grupo era muito bom, tínhamos homens, mesmo, que não se vê neste momento. Rui Águas, Mozer, Paneira, Veloso, Hernâni, Silvino, Neno. Depois tínhamos, os mais novos: eu, o Rui Costa, o João Pinto. Crescemos um pouco com eles, mas tínhamos homens. Agora, não se vê balneários com aquele perfil de jogadores. E não só de jogadores mas como homens, que te metem a mão por cima e te ajudam e te apoiam. Foi dos anos que mais cresci, mais aprendi e que me deram uma bagagem tremenda. Nunca mais vamos estar em balneários tão saudáveis e tão pedagógicos, que ao mesmo tempo te ajudam a formar. Todos os dias são de formação, porque vês aquilo, vês aquele e tu vais crescendo. Se é preciso haver uma reunião ou parar... o Schwarz também era tremendo. Crescemos e aprendemos e depois tínhamos aquele suporte daqueles homens e foi muito importante. Para ganharmos o título aqueles homens foram muito importantes.

— Aquele 6-3 é mesmo a cereja no topo do bolo?
— É porque ainda falam disso.

— E ainda falam entre vocês?
— Às vezes, já menos. Também não nos vemos muitas vezes, falta encontrarmo-nos mais. Também assumo a minha culpa, sou demasiado caseiro. Mas é sempre um prazer quando estamos juntos.

— Brincam muito consigo por nunca mais ter marcado um golo assim na gaveta?

— Marquei mais golos, atenção, mas assim como aquele mais ninguém marcou, nem o João Pinto nem o Isaías. Mas é um golo histórico, que as pessoas ainda se lembram e que vão falando. É um golo fantástico.

— Depois faz também uma carreira muito importante no Corunha, no Super Depor. Aquilo também era só craques. Começando pelo Rivaldo.
—  Sim, era um pouco a imagem que o Paris Saint-Germain estava a querer fazer na altura, para trazer os melhores jogadores.

— Como é que foi aquela experiência?
— Foi ótimo mas era um balneário difícil, muitas nacionalidades, muitos franceses e brasileiros, dois portugueses, eu e o Nuno [Espírito Santos], marroquinos,espanhóis, Na altura, referências assim que as pessoas possam lembrar: Martín Vázquez e Txiki Berigistain, um do Real Madrid outro Barcelona, Mauro Silva, campeão do mundo, Naybet, Rivaldo.

— Rivaldo era mesmo…
— O Rivaldo, e ele não se vai chatear comigo, treinava q.b.. Se ele treinasse como depois foi treinar para o Barcelona. Mas já era um fenómeno. Não gostava muito, às vezes, dos treinos, de algum treino que se fazia, dizia: ‘Ah, este treino.’ Mas, em 10 remates, punha nove dentro da baliza, ou nove enquadrados com a baliza. Depois, a partir daí, ou o guarda-redes dá um frango, ou a bola entra. Uma coisa tremenda. Estávamos a treinar livres e o Rivaldo ficava sentado. Aquela resenhazinha, depois do treino. Os outros batiam, batiam, batiam, e o Rivaldo, depois, levantava-se. Pum, na gaveta, e sentava-se outra vez. Levantava-se, outra vez na gaveta e sentava-se outra vez. Uma coisa tremenda. Nem precisava daquela referência de estar a bater, chegava ali, pum, golo. Sim, mas, Djalminha e Rivaldo foram dos melhores jogadores que apanhei.

— E como é que era o Scaloni? Defesa-direito, certo?

— Scaloni era forte. Chegou com médio-centro, foi adaptado a defesa-direito. Muita força, muita disponibilidade, pouca qualidade técnica.  Foi-se fazendo, pela capacidade de trabalho dele, sempre um trabalhador que baixava a cabeça, sempre muito trabalho. O Scaloni é caracterizado como um jogador de trabalho. E vê-lo como treinador da Argentina, com aquela tranquilidade. Também com o Messi, não é? Estás mais tranquilo. Estás ali à espera que aquilo aconteça. Mas vê-lo ali num patamar de selecionador, com aquela tranquilidade, é sinal que todos vamos mudando.

— Mas fora do campo era tranquilo ou agitado?

— Agitado. Espetacular. Sempre a brincar, sempre com partidas. Sempre a fazer partidas, sempre disponível para brincar. Uma coisa... Também era miúdo na altura. Depois vai para o Lazio e aí começa a ter uma disciplina diferente, em termos de treino e de mentalidade. Também com a alimentação. Na altura, em Espanha, nos meus anos de Corunha, não havia este cuidado nutricional que há agora. Ele, quando vai para a Itália, começa a beber um pouco disso, a cuidar-se muito. Tinha sempre problemas de peso, andava sempre com as capas de chuva, a treinar-se mesmo com calor para ver se perdia um bocado de peso. Depois foi-se fazendo. Portanto, o Scaloni é um exemplo tremendo para muitos. O trabalho compensa, o trabalho compensa. Vais, vais, vais, a disciplina e ele chegou e fez uma carreira fantástica.

No PSG foi um ano de café com leite e uma torradinha. Eles agora bebem champanhe e comem caviar.

— Ainda passa um ano no PSG, com Pedro Pauleta, que na altura era grande figura da equipa. Como é que foi esse ano? O treinador era Halilhodzic
— Foi um ano de café com leite e uma torradinha. Eles agora bebem champanhe e comem caviar e nós, na altura, era café com leite.

— Isso quer dizer o quê?
— Era um plantel fraco. Fraco, sim. Com poucos recursos, com um treinador que deu para três meses e depois não dava para uma época inteira. Fui completamente um tiro no pé do clube.