As arestas ainda por limar na melhor 'Geração de Ouro'
Portugal tem a qualificação para o Campeonato do Mundo praticamente garantida, e não é expectável, desde que mantenha mínimos de qualidade na composição dos futuros plantéis, que volte a passar por dificuldades tão cedo. Os resultados e o estatuto de cabeça de série, e os alargamentos a cada vez mais finalistas, criaram grande desnível entre Seleção e adversários, o que torna qualquer corrida uma questão de tempo até ser arrebatada. Claro que haverá acidentes, mas dificilmente ao ponto de colocar apuramentos em causa. Neste, Roberto Martínez sabe que basta vencer outra vez a Hungria e a Arménia não ganhar na Irlanda para que os foguetes possam cobrir de novo os céus do país.
Há quem não veja também grande interesse em tirar ilações de jogos como o Portugal-Irlanda de sábado. Partidas de um só sentido, em que só uma das equipas quis, na realidade, jogar. Só que em fases finais cada vez mais profundas, a possibilidade de ter de ultrapassar autocarros de um ou dois andares é cada vez mais real. Lembremo-nos de Marrocos no Qatar, por exemplo, que ditou a eliminação lusa após um cabeceamento certeiro de En-Nesyri e muita coesão defensiva. A equipa de Fernando Santos teve 74% de posse, passou 663 vezes a bola, com 85% de sucesso, e rematou ainda 12 vezes, sem conseguir marcar, caindo nos quartos de final do Mundial. Há, por isso, arestas por limar mesmo numa Seleção que incorpora a melhor geração que Portugal já viu em campo.
'ATAQUE POSICIONAL' ESTÁTICO
É há muito um problema de Roberto Martínez, que nunca o conseguiu potenciar na Bélgica, e também desta seleção portuguesa, já que praticamente nunca foi colocado a arejar durante a longa era de Fernando Santos, um técnico que sempre preferiu as transições ao domínio do jogo. O espanhol monta o seu ataque posicional como se jogasse xadrez, movimentando peças e detendo-as na casa a que chegam, esquecendo-se da rotatividade posicional, das movimentações falsas para atrair e angariar espaços para os companheiros e dos contramovimentos. Esquece-se ele ou os jogadores, que ficam sempre à espera da bola para a devolver ou assumir individualmente o próximo passo. Se se sente encurralada, a equipa insiste em cruzamentos para Ronaldo tentar finalizar. Ou outro que na área se aventure, sendo que Bruno Fernandes, Bernardo Silva ou mesmo Dalot — como apareceu várias vezes com a Irlanda — estão longe de ser especialistas nos duelos pelo ar. Tudo é demasiado previsível. Nem o atrair para um dos lados com superioridades numéricas para virar o centro do jogo para o outro se consegue fazer. Mesmo com Rúben Neves, um especialista, em campo.
NUNO MENDES E A COMPANHIA
Em grande forma. Uma locomotiva que às vezes aspira a ser o mais fiel decalque de Roberto Carlos, mas que na Seleção desespera por companhia. Quando vai, vai sozinho, ao contrário do lema do antigo clube, que dizia «Quando vai um, vão todos.»
Se Portugal tem em Nuno Mendes o melhor jogador do mundo, como acha o presidente da UEFA, Aleksander Ceferin, a verdade é que só o traz à superfície a espaços, como aconteceu na conquista da Liga das Nações. Para que seja possível usufruir deste mais tempo, o espanhol terá de esquecer os estatutos e colocar quem mais sentido faz para melhorar o coletivo, sem perder o desequilíbrio individual que alguns como Neto, Conceição e Félix acrescentam.
O parceiro ideal de Mendes será um extremo que realmente ameace nas diagonais ou convide o ala ao meio-espaço interior, libertando essa rota. Porque não Pedro Gonçalves? Também ele procura redenção, joga nas entrelinhas e é capaz de percorrer as bolsas de espaço que lhe derem. E a química entre os dois seria resgatada para a Seleção. Outras soluções, sobretudo Leão ou Conceição, torná-lo-iam uma unidade mais individual e pouco associativa.
QUE SE PASSA COM BRUNO?
O capitão do Man. United atravessa momento de pouca confiança, que as constantes alterações de médio de construção com Amorim para segundo avançado com Martínez não ajudam a estabilizar. E o problema parece ainda mais profundo. Vitinha e Bruno Fernandes querem ambos ser Alfa, ter a bola e organizar, e Martínez tem privilegiado o cérebro do PSG. Já Bernardo Silva não compete pela bola, e associa-se mais à frente, se não o colocarem para esse momento ainda de organização. As constantes saídas de Ronaldo da área obriga ainda Bruno a preencher esse espaço, sendo engolido pela marcação. A equação pede a Martínez uma resolução que este não consegue dar.
RONALDO DEMASIADO SÓ
O ciclo continua, aos 40 anos, e resta ao selecionador reduzir ao máximo os danos colaterais da decisão. Mesmo que dois avançados não correspondam diretamente a mais oportunidades e golos, com blocos tão baixos, a equipa tem de se posicionar muito dentro do mesmo para desfazê-lo. Não faz sentido que sejam Dalot, Bernardo ou Bruno a assumir o desafio posicional, embora também lá possam aparecer, mas sim um avançado. Nestes jogos, Ramos não pode jogar cinco minutos, talvez tenha mesmo de entrar de início. A melhor geração de que me lembro tem instrumentos para limar todas estas arestas. Se Martínez quiser.