Falar de decisões difíceis, ao longo da crise da Covid-19, é falar dos médicos que tiveram de escolher entre quem recebia e não recebia ventilador, quem vivia e quem morria, quais as famílias que iam rever os seus entes queridos e quais as que teriam de fazer luto por eles. Essas, sim, foram decisões difíceis, incomparáveis com todas as outras que tiveram de ser tomadas no contexto da pandemia. Se a tragédia que se abateu sobre o Mundo não for suficiente para que as pessoas ponham os vários assuntos do dia-a-dia em perspetiva, não sei o que será. E ficar à espera de decisões normais em tempos anormais é não perceber o estado de guerra em que somos obrigados a viver. Aliás, numa medida exemplar que teve pouco eco em Portugal, o Reino Unido decidiu equiparar, para fins de indemnização às famílias, os médicos, enfermeiros e auxiliares, do Serviço Nacional de Saúde, mortos na luta contra o novo coronavírus, aos militares caídos nos teatros de guerra tradicionais.

Ao longo da última semana foram tomadas, no desporto português, várias decisões importantes, de consensualidade impossível, que visaram, pura e simplesmente, «tirar leite de pedras», ou seja, salvar na medida relativa, e evitar a perda absoluta.
O que se abateu sobre todo o Mundo foi uma tragédia que noutras fases da história da humanidade teria assumido proporções bíblicas. Ninguém escapou à catástrofe e não valerá muito a pena (a não ser por razões de tática política…) fazer grandes divagações sobre a apatia da China na primeira fase do surto em Wuhan. A verdade é que deter este inimigo desconhecido era quase como parar o vento com as mãos, e os chineses ainda foram capazes de nos apontar o caminho do confinamento, como forma mais eficaz de evitar perdas maiores. Em suma, todos fomos vítimas, todos somos vítimas, sem culpados; e é nessa medida que devemos aprender a viver, uns de uma forma, outros de outra, com as consequências de uma Covid-19 que teve entrada direta para o top ten das tragédias globais.

Falando com um pouco mais de detalhe das decisões tomadas, acabar, sem que tivessem chegado ao fim, as modalidades de pavilhão, foi um soco no estômago de jogadores, staff, dirigentes, patrocinadores e adeptos. Havia forma de fazer diferente, para melhor? Francamente, não vejo como. Porque, como sucedeu noutros âmbitos, criar condições para terminar os campeonatos iria implicar um esforço humano, de meios e financeiro, incomportável. E não tenhamos a hipocrisia de dizer que o dinheiro não é para aqui chamado. Claro que é.
Mas, no âmbito das modalidades de pavilhão, para já apenas a NBA está a mexer-se para levar a época de 2019/2020 até ao fim. Em cima da mesa está a possibilidade de os jogos que faltam serem todos disputados nos seis pavilhões dos parques temáticos de Orlando, na Florida, onde as 30 equipas seriam alojadas, cada uma em seu hotel. Ora bem, se pode ser possível na NBA, porque não será por cá? Resposta fácil: porque até ao fim da temporada estão em causa, na NBA, entre direitos televisivos, sponsorização e publicidade, valores na ordem dos três mil milhões de dólares.

Foi decidido que o Campeonato de Portugal não seria retomado e que não haveria condições, sequer, para um play-off entre os líderes das séries. Assim, sobem Arouca e Vizela, por serem aqueles que tinham pontuação mais alta à data da suspensão. Protestam contra a fórmula os outros dois líderes, Praiense e Olhanense, e não há como não simpatizar com as suas mágoas. Haveria possibilidade de deitar mão a outros critérios? Claro que sim, e o clube da ilha Terceira até lembrou que, de todos os líderes, era o Praiense quem dispunha de um avanço mais folgado sobre o segundo classificado. Mas a fórmula encontrada pela FPF é igualmente respeitável e a decisão está tomada. Virão a caminho, por certo, protestos e recursos, como se esta decisão não tivesse sido tomada em tempo de estado de emergência. É que, ouvindo algumas pessoas, parece que nada de especial aconteceu e que está tudo na mesma. Pois, para esses tenho uma novidade: não está, nem vai estar nos tempos mais próximos.
Pelos vistos, haverá, num horizonte breve, reuniões magnas da Liga de Clubes e da FPF para acomodar em regulamentos ordinários medidas extraordinárias. Que por mais duras que sejam, vão ajudar a criar o menos mau dos futuros ao desporto português.

Mais ou menos o mesmo aconteceu na Liga 2, com a diferença de os apoios aos clubes de uma competição dita profissional serem mais substanciais, graças à FPF, que tem sido um verdadeiro airbag que não consegue evitar que a chapa fique amolgada, mas, pelo menos, vai salvando vidas. Há quem se queixe, entre aqueles que ainda acalentavam o sonho da subida. Mas, francamente, era possível fazer diferente? Apesar de todo o carinho, compreensão e solidariedade com que olho para o muro de lamentações onde vários clubes vão carpir justas mágoas, ainda não vi respondida uma pergunta que tenho colocado aqui, em A BOLA TV e ABOLA.PT: Qual a alternativa?

Já agora mergulhemos na questão da Liga, numa perspetiva até agora pouco debatida. Com o regresso dos jogos, regressarão também os direitos televisivos, alguma publicidade e sponsorização. Tem sido dito, levianamente em minha opinião, que este regresso visa apenas acautelar os interesses dos três grandes. Porém, a verdade não é essa. Se forem disputados os 90 jogos que faltam, haverá salvação para os clubes que mais dependem dos direitos televisivos, e esses não são, de todo, os três grandes. Basta olhar para as contas e verificar que, por exemplo, o Benfica tem receitas anuais que chegam aos 200 milhões e, de televisão, andará pelos 40, ou seja, 20% dos que lhe entram nos cofres. Esta percentagem, em FC Porto e Sporting, pode subir um pouco, mas tal como o Benfica, a chave do negócio no Dragão e em Alvalade está nas receitas extraordinárias, ou seja, nas vendas de jogadores. O SC Braga, embora muito distante dos outros três emblemas, está a procurar trilhar um caminho semelhante e a transferência de Trincão para o Barcelona é ilustrativa disso mesmo. E os outros 14, onde (Vitória SC de Guimarães à parte) a bilhética é esquelética (rima e é verdade), em que percentagem dependem dos direitos de televisão? Não se mete pelos olhos dentro que são eles os principais beneficiados com o regresso da Liga, sem que se retire importância ao que também significa para os outros? Como dizia, há um bom par de anos, António Guterres, «basta fazer contas…»

Finalmente: tudo o que desejo é que o futebol português seja capaz de fazer destes problemas uma oportunidade, e que da crise da Covid-19 nasça uma forma de estar mais solidária - que tal centralizar os direitos televisivos? -, com quadros competitivos, em todos os escalões, realmente adequados à realidade económica, social e financeira do país que somos, e com um quotidiano mais baseado no diálogo do que na arruaça.