«Deram-me uma oportunidade única»
Vítor Matos (Foto: IMAGO/Liverpool)

ENTREVISTA A BOLA «Deram-me uma oportunidade única»

INTERNACIONAL04.01.202408:00

Vítor Matos chegou ao Liverpool em 2019 para ser treinador de desenvolvimento e adjunto de Klopp; continua a absorver todas as 'master classes' do alemão; a história da camisola do Benfica que espelha a química entre os vários elementos da equipa técnica

LIVERPOOL – É um sorridente Vítor Matos quem nos recebe no centro de treinos do Liverpool, em Kirkby, há pouco mais de três anos quartel-general dos Reds. Um espaço imponente, com condições espetaculares, inúmeros relvados impecáveis, um campo de Padel onde os treinadores libertam alguma da pressão acumulada, e desde esta época a Melwood Arena, uma jaula 5x5, ideia do adjunto Pep Lijnders e inspirada nos ringues portugueses, em que a bola nunca sai e se pretende não só mimetizar em relva natural o futebol de rua, como melhorar técnica e criatividade dos jogadores. Pintada, além do nome de batismo, homenagem ao centro de estágios que agora ficou para a equipa feminina, está uma frase com coautoria do técnico-adjunto português: This place belongs to the ones who only have winning in their mind (Este espaço pertenca àqueles que apenas têm vencer na sua mente.)» 

Em Anfield parecem redobradas as aspirações à conquista do título inglês. O Liverpool encontra-se no topo da tabela e tem apresentado futebol de elevado quilate. Vítor Matos vê um grupo saudável e com margem de progressão, como mote para uma longa e muito interessante conversa.

- O mais importante é que a equipa ainda está a crescer e a desenvolver-se em termos qualitativos. Isto vai ser decisivo para o que falta da época. As equipas que ganham são as equipas que melhoram. E é nisso que nos focamos todos os dias. Queremos criar novas memórias, novos jogos especiais, lutar para vencer troféus e, neste período de tempo, fomos criando a base coletiva para isso.

- E que balanço faz sobre estes anos em Liverpool?

- É com muito orgulho e paixão que estou no Liverpool! Parece que ainda foi ontem que entrei em Melwood para o primeiro treino. A relação com o Jürgen [Klopp] e com o [Pepijn Lijnders] é algo que prezo muito. São pessoas muito importantes para mim. Deram-me uma oportunidade única. O Liverpool é um clube gigante e um dos mais icónicos do mundo, mas, ao mesmo tempo, funcionamos todos como uma família. Poder fazer parte disto, poder ajudar no dia a dia no treino e nos jogos é algo que com que sempre sonhei.

- Cada sessão de treino de Klopp ainda é uma master class, como afirmou após as primeiras semanas?

- Claro que sim. Os problemas vão mudando. E, em função do seu valor humano, da sua experiência e forma de estar, há sempre coisas fantásticas que se conseguem tirar. Estou extremamente grato porque permite-me ver, aprender e estar neste nível com estes jogadores.

- Não o conheço pessoalmente, mas imagino Klopp como alguém hiperativo? Como é que ele consegue gastar tanta energia? É no Padel?

- Às vezes não é como gasta, é como volta a ter aquela energia, como regenera. Sim, o Padel é algo que nos ajuda muito porque permite-nos estar um bocadinho fora do dia a dia. Temos ali um momento em que também descontraímos, competimos e gostamos de estar.

- Ok, tudo bem, mas há algo mais em que gaste aquela energia?

- Não sei. Eu deixo-o à vontade nesses dias (risos)…

- «Preconizo manter a posse de bola em postura ofensiva. Faço isso por três razões: em primeiro lugar, porque acredito que é assim que o futebol deve ser jogado; segundo, porque não há forma mais fácil de vencer; e terceiro, por ser a melhor maneira de desenvolver jogadores. Com a bola, há mais tempo para tomar decisões corretas, driblar, passar mais vezes e marcar mais golos. E, jogando assim, certamente se evolui mais. Se o estilo de futebol é mais negativo, não se cria o jogador mais desejável; não se consegue um jogador técnico e criativo.» Mantém estas ideias? Tenho de provocá-lo e dizer-lhe que parecem mais de um discípulo de Guardiola do que de Klopp...

- São as minhas. Na essência, Klopp e Guardiola são muito semelhantes, porque são treinadores que querem um jogo ofensivo.

- Querem dominar o jogo…

- E têm uma preocupação grande em atacar.

- A diferença estará na velocidade com que se tenta chegar à baliza…

- Sim, depois a concretização da ideia, os valores de cada um são diferentes. O que quis dizer nessa altura foi que, para mim, é muito mais importante que exista esta preocupação em atacar e em criar este tipo de futebolista, porque isso permite um maior número de ações, um jogador mais criativo e com iniciativa, sem descurar o que existe sem bola em termos defensivos. Mas mesmo quando a preocupação é tu próprio quereres condicionar o jogo do adversário já voltamos à mesma ideia. Em termos de desenvolvimento, temos muito mais a ganhar se pensarmos assim, pelo menos é como nós pensamos aqui no Liverpool.

- É mais fácil aplicar um modelo de intensidade tão elevada num clube tão emocional?

- Há uma simbiose entre aquilo que é o clube, os adeptos e o treinador principal. Quando isso existe, consegue-se criar momentos em Anfield como estes que temos vindo a viver e como outros que já tivemos como o jogo com o Barcelona. Quando existe uma visão para o clube, uma identidade que se quer criar e as coisas batem certo é fantástico. 

- Klopp está há oito anos em Liverpool. Se cumprir contrato será uma década. Não lhe queria chamar um vício, mas está a criar-se uma identidade muito forte, que poderá deixar herança pesada para um novo treinador. É assumido que o clube quer continuar a jogar assim depois de vocês? 

- Não revelaria grande inteligência se assim não o fosse. Além de existir sucesso, criou-se uma grande relação… As pessoas reveem-se nesta ideia de jogo, nesta relação entre equipa, adeptos e treinador. Há uma química. O que se criou é tão especial e tão único que faria todo o sentido manter a ideia. Atualmente, vivemos um tempo em que os clubes são comprados de momento para o outro e claro que uma situação semelhante poderá implicar mudanças, porém, como está, faz todo o sentido.

- Vocês não usam o GPS por não quererem condicionar o conforto e também o foco dos futebolistas. Não querem que estes pensem em métricas, mas unicamente no que têm de fazer em campo. Parece caso raro com o resto do mundo todo virado para a big data

- Parte um pouco daquilo que o Jürgen procura enquanto treinador. Existem muitas ferramentas e cada técnico é livre de valorizar o que entender. Nós queremos valorizar aquilo que é o rendimento de jogo. A nós não nos diz nada se um jogador faz 13 quilómetros por encontro se a ideia é atacarmos mais rápido ou atacarmos por dentro com uma maior verticalidade e esse jogador do meio que analisamos faz todas as receções para trás… Ou até está a correr para trás.

- Pode fazer 13 quilómetros e 9 terem sido corridos de forma errada…

- Sim, sim. Mesmo no que determinado jogador pode oferecer, valorizamos se, dos dez passes que faz, oito não são feitos para trás e para o lado. Nós queremos que ele valorize aquilo que é importante para a equipa. Claro que o resto é importante, mas o que valorizamos mais? É aquilo! Se é aquilo, temos de olhar para lá. É algo concreto. Se calhar, daqueles quilómetros, como disse, metade não foram corridos bem. Sem dúvida. Não é concreto. Não sentimos a necessidade de ver as coisas dessa forma e, por isso, não o fazemos. 

- Mas acha que os jogadores se sentem cada vez mais condicionados pelas métricas?

- Sim, acho que estas levam o treino e o jogo para um caminho que não vai valorizar a qualidade de jogo.