Paulo filho e Paulo pai em 2025. Foto D. R.
Paulo filho e Paulo pai em 2025. Foto D. R.

Paulo Futre Jr. — o 'calendário da tristeza' inventado por um pai «inteligentíssimo»

Num mês especialmente dedicado à luta contra o ‘bullying’, A BOLA conversa com o filho mais velho do ex-grande futebolista Paulo Futre. Paulo Júnior é sobredotado, um dos grupos mais vezes vítimas daquele flagelo. A sobredotação «não tem qualquer mérito em si mesma, é como ter genes para ser alto»

MADRID — Paulo Futre tem dois filhos. O mais novo, Fábio, foi futebolista e agora é treinador das camadas jovens do Atlético de Madrid; o mais velho, Paulo, é um sobredotado que se dedica a múltiplas atividades. Num mês marcado por várias iniciativas antibullying um pouco por todo o Mundo, uma oportuna entrevista com alguém que felizmente não chegou a ser vítima. Paulo Futre Júnior, 36 anos, um depoimento para reter.

— O que é o calendário da tristeza, um dos valores que o pai lhe transmitiu?

— Isso é algo que desde miúdo notei que os pais dos meus amigos não faziam. Cada vez que eu tinha um problema, chegava a casa, contava ao meu pai, ouvia-me atentamente e, longe de tirar importância, mostrava-se compreensivo e perguntava-me quanto tempo precisava para estar triste, se um dia, uma semana, um mês. Apontávamos a data no calendário. Até lá podia chorar, lamentar-me o que quisesse, mas, chegado esse dia, tinha de mudar o chip, esquecer a tristeza, olhar em frente e passar a outra coisa. Isto sempre me fez pensar que se trata de uma questão de inteligência emocional. O importante que é saber dar, a cada problema que nos surge na vida, a importância adequada. É o que acontece com os futebolistas quando perdem: têm pouco tempo para lamentar-se porque, três dias depois, têm outro jogo. O meu pai jogou numa época em que não havia psicólogos desportivos e o que fez foi desenvolver estratégias para lidar com a frustração e os maus momentos que teve de passar. Eu aprendi com ele e também as tenho utilizado. Mas não muitas vezes. Sou um afortunado, não me posso queixar porque golpes duros, na vida, felizmente não tenho tido.

— Os dois irmãos sofreram muito com a separação dos pais?

— Dentro do mau, foi o menos possível. Foi uma separação amigável. Claro que foi duro, apanhou-nos numa idade crítica, eu com 12 e o Fábio com 11 anos, mas eles fizeram o que puderam para que nós sofrêssemos o menos possível e estou-lhes muito agradecido. Depois disso sempre vivemos com a nossa mãe. Eles ficaram muito amigos e isso permitiu que pudéssemos ver o pai todas as semanas.

— A avó paterna também foi importante nas vossas vidas…

— Já cá não está… Tenho muitas saudades dela, mas também gosto muito da minha avó Carminda, mando-lhe um grande beijo porque sei que vai ler esta entrevista. O que recordo da minha avó Maria Augusta é que era uma mulher muito, muito carinhosa, sem maldade, era um coração puro e para mim foi muito importante como exemplo. Não teve a sorte de ir à escola, não sabia ler nem escrever, mas, quando o meu pai começou a ter sucesso no futebol, ela fez um grande esforço por aprender para, pelo menos, poder ver nos jornais o nome do filho. Ante qualquer tentativa de soberba intelectual que eu possa ter, penso sempre na minha avó e na sorte que eu tive na vida e ela não teve. Ela só foi uma vez ver o meu pai jogar, quando era júnior. Sofreu tanto com as entradas duras que lhe fizeram que nunca mais voltou a um campo de futebol, ficava em casa a fazer comida para toda a gente que lá aparecia. Também nisso a minha infância foi diferente da dos meus amigos. A nossa casa estava sempre cheia. Os meus pais casaram muito jovens e em Madrid, em Milão e todos os sítios onde vivemos sempre estiveram connosco vários amigos do meu pai, em casa nunca havia menos de sete, oito ou dez pessoas, o meu pai arranjou trabalho para todos eles, que, pouco a pouco, foram organizando as suas vidas. Como o meu pai não gostava de sair à rua e ser reconhecido, sempre fizemos muita vida de casa. Ele brincava muito connosco e tanto eu como o Fábio temos muito boas recordações desses tempos.

— O Paulo pai é uma pessoa inteligente?

— É importante esclarecer que a inteligência não significa refinamento cultural, isso é um grande preconceito. A inteligência é a capacidade de resolver problemas novos. Culturalmente não é muito refinado, o que não impede que se possa falar com ele de muitas coisas. Quando estamos juntos do que mais falamos é de música. Ele sempre foi um apaixonado pelo rock’n roll e desde miúdo sempre me incentivou a que aprendesse a tocar a guitarra, baixo ou piano. O que ele é, de certeza, é muito, muito inteligente. Tem uma enorme capacidade para resolver, depressa, problemas novos, para os negócios tem uma enorme intuição rápida e criativa. Um bom jogador de futebol tem de ser inteligente. O Salah, do Liverpool, é um bom jogador na categoria rápida de xadrez. Não há muita diferença entre resolver com rapidez uma jogada no tabuleiro e o que um futebolista tem que fazer dentro do relvado: estar bem posicionado, antecipar-se ao rival, controlar a bola, orientar o jogo, tomar decisões em décimas de segundo, coordenar o corpo ao mesmo tempo e muito mais coisas, há um nível muito alto de sofisticação na inteligência que tem de ter um jogador de elite. Outra coisa é poder haver futebolistas que não são cultos, mas isso depende do meio onde nasceram e da educação que tiveram. O que não há dúvida é que, sem inteligência, não se pode chegar a ser um bom futebolista. Basta ver a criatividade que o meu pai tinha dentro do campo para ter a certeza de que é uma pessoa muito inteligente. A rapidez com que driblava combinava a técnica com a inteligência. Como dizia Albert Einstein, ‘a criatividade é a inteligência a divertir-se’. O que fazia o meu pai, sozinho contra três adversários num reduzido espaço, pensar em décimas de segundo o que devia fazer com a bola ao mesmo tempo que tinha de entender o espaço e coordenar o corpo, tudo isso é de uma muito elevada sofisticação.

— E como é que ele aprendeu a fazer isso tudo?

— A inteligência é como a altura, algo que vem de nascença. Mas se ele não tivesse potenciado o talento natural com que veio ao mundo com trabalho, muitos treinos, sacrifício e grande esforço, nunca teria chegado ao nível a que chegou.

— Muitos jogadores vindos, como o seu pai, de meios relativamente modestos veem-se, de repente, numa situação desconhecida e com muito dinheiro na mão…

— Esse é um problema de difícil solução. O meu pai costuma dizer que isso é como jogar à roleta russa. Sentiu vertigens porque era consciente de que não podia falhar ao miúdo que lhe tinha pedido o seu primeiro autógrafo. Ele teve a sorte de não haver bala no carregador da pistola e poder continuar em frente.