Paulo Futre Jr. — a história de um sobredotado que até evitou ter notas máximas em exames
MADRID — Paulo Futre tem dois filhos. O mais novo, Fábio, foi futebolista e agora é treinador das camadas jovens do Atlético de Madrid; o mais velho, Paulo, é um sobredotado que se dedica a múltiplas atividades. Num mês marcado por várias iniciativas antibullying um pouco por todo o Mundo, uma oportuna entrevista com alguém que felizmente não chegou a ser vítima. Paulo Futre Júnior, 36 anos, um depoimento para reter.
— O que é ser sobredotado?
— A sobredotação não tem qualquer mérito em si mesma. Há pessoas que nascem com genes para medir 2,20 metros e o mesmo acontece com a capacidade intelectual. Tem o seu peso e quem mais o sente são as mulheres sobredotadas, desde cedo percebem que isso lhes provoca problemas com as amigas, com os rapazes, que se sentem intimidados, e então acabam por desenvolver estratégias de disfarce para se adaptarem ao grupo em que vivem.
— O que é a Mensa, de que o Paulo faz parte?
— É uma associação internacional que agrupa a pessoas que, através de testes oficiais, são reconhecidas como tendo uma capacidade intelectual superior a 98% da população. Entrei por recomendação da minha psicóloga e foi uma decisão acertada, pois encontrei um ambiente estimulante e muito variado.
— Quando e como começaram a notar que o Paulo não era um miúdo como os outros da sua idade?
— Desde muito pequeno sempre tive muitas inquietudes, muita curiosidade. Quando tínhamos de mudar de país, para acompanhar o meu pai, eu era o membro da família que mais rapidamente aprendia as línguas. Hoje . Jogava xadrez e ganhava aos mais velhos, tocava vários instrumentos… Muitas coisas ao mesmo tempo metidas na minha cabeça.
— Como é o relacionamento entre os dois irmãos, um que é sobredotado e o outro que não o é?
— Entre nós nunca houve problemas, só temos um ano de diferença, na mudança de país para país sempre estivemos muito unidos. Ele gostava de jogar à bola, eu de outras coisas. E por isso chamava-me o inventor. O Fábio é o meu melhor amigo e sempre o será.
— Como era o seu comportamento nas aulas?
— Para mim as aulas eram de tal forma aborrecidas que tinha de procurar outras coisas para estar entretido. Apercebia-me de que podia conseguir boas notas com pouco esforço, comparado com o que tinham de fazer os outros miúdos. A nota máxima em Espanha era 10, mas eu não a queria ter para não ser visto como um marrão. Nos exames deixava em branco perguntas que eu sabia, davam-me um 7 ou um 8. Os meus pais ficavam contentes e eu também, porque assim evitava ter problemas com os meus colegas da aula. No colégio, como viam que eu tinha muito mais facilidade para aprender que os outros, queriam que eu fosse para uma classe um ou dois anos mais adiantada, mas a minha mãe achou que não. Até pelo meu apelido. Eu era muito conhecido na escola, muitas vezes havia jornalistas à porta para me verem entrar e ela pensava, com razão, que essa pressão mediática que eu tinha já era suficiente. Por isso opôs-se à ideia e continuei onde estava. Curiosamente, à minha mãe, quando ainda era menina e andava na escola, também lhe propuseram passar um ano à frente.
— Então vem da mãe a herança de sobredotado?
— Grande parte disto costuma ser genético. A minha mãe quis estudar medicina, mas deixou o curso para poder acompanhar o meu pai. Não sei qual é o percentil que têm, mas os dois são muito inteligentes. O meu pai, sem ser uma pessoa com grande cultura, tem uma rapidez mental extraordinária, vai sempre um pouco à frente dos outros.
— Alguma vez sofreu ‘bullying’ por parte dos seus colegas de escola?
— Não, felizmente. Em relação à sobredotação existem duas teorias que podem chegar a coincidir: a harmonia e a desarmonia. Na desarmonia, alguém que é mais inteligente em comparação com os da sua idade sente-se incompreendido, não se adapta e acaba por sofrer de muitas maneiras. Na harmonia, que é a que com eu mais me identifico, a pessoa sabe adaptar-se à situação.
— Também chegou a estudar numa escola do Porto. Como foi a experiência?
— Estava no segundo ano da escola primária. Tinha aprendido a ler e escrever em italiano, em Milão. No Porto estudámos numa escola internacional e a maioria das aulas eram em inglês. Foram bons tempos e tanto eu como o meu irmão, apesar de então sermos muito pequenos, ficámos, para sempre, com muito boas recordações dessa passagem pelo Porto. Volto a falar da minha mãe: como sabia que com a vida do meu pai andaríamos sempre a saltar de país para país, achou que o melhor para a nossa educação era que fossemos a colégios internacionais. Claramente, acertou.
— Como foi na Universidade?
— Comecei engenharia biomédica e tinha boas notas, mas acabei por mudar para belas artes e design, onde recebi o prémio ao melhor aluno da faculdade. O meu principal problema era — e é — que sempre quis estudar vários cursos sem aparente relação entre eles: medicina, economia, belas artes, filosofia, psicologia ou gestão. Por mim estaria toda a vida a aprender. Conheci muitos exemplos semelhantes. Uma das minhas melhores amigas estudou física, depois arte dramática e agora tem uma empresa de software.
— Sendo filho de futebolista, como não quis seguir o caminho do pai?
— Em nenhum dia da minha vida senti a menor vontade de ser jogador, acho que isso está muito marcado pelas recordações de ver o meu pai lesionado em Itália. Vi o que sofreu. Foi tão duro para ele e toda a família que cheguei a odiar o futebol. Na minha geração, a do meu irmão e a dos meus primos, sou o único canhoto, até costumo dizer que eu sou o segundo melhor canhoto da família, mas a verdade é que sempre tive falta de jeito. Se tivesse de jogar seria a guarda redes, o meu ídolo de miúdo era o Higuita.
— Quando começou a sentir-se atraído pela música, pela pintura, pelas línguas?
— Diria que desde sempre tive uma infinita curiosidade por essas coisas. Quando tinha 5 ou 6 anos e aprendi a multiplicar e a fazer divisões tive uma crise: calculei que, mesmo vivendo 100 anos, não teria tempo para ler todos os livros que queria, para aprender tudo o que queria. Quando chegava o meu aniversário, em vez de estar contente chorava, consciente de que havia um número limitado de coisas que poderia fazer na vida.
— Foi crescendo até que, ainda adolescente, o pai o meteu nos negócios da família. Como foi?
— Tudo de forma natural. Lembro-me que quando tinha 11 ou 12 anos sugeri ao meu pai que uma coisa que ele poderia fazer era arranjar casa para os jogadores das suas transferências, que mudam de clube e de cidade e necessitam ter onde viver. Agora com internet isso parece fácil, mas no início do século era complicado. O meu pai achou que era boa ideia e o que fez foi chegar a acordo com imobiliárias de todo o lado para serem elas a proporcionar a casa aos futebolistas transferidos. «Estas férias estão a ser pagas por ti, pela ideia que tiveste» dizia-me o pai, que pouco a pouco me foi pedindo para fazer pequenas coisas. Começou a levar-me com ele a reuniões para fazer de tradutor, às vezes até faltava às aulas para poder ir, umas coisas levaram a outras, fui entrando cada vez mais no seu dia a dia e assim estamos, juntos, faz já 20 anos.
— É verdade que negociou o acordo de colaboração do seu pai com a Al-Jazeera?
— Devia ter uns 18 anos e esse foi um dos primeiros negócios em que tive responsabilidade total. Era um contrato menor, comparado com os valores envolvidos nas transferências. O pai pediu-me que fosse eu a tratar de tudo, assim fiz e ele só teve de assinar. Tempos mais tarde, descobri que a pessoa com quem eu falava e cheguei a acordo era, nem mais nem menos, que Nasser AI-kheleifi, atual presidente do PSG.