Dominik Szoboszlai durante o Milan-Liverpool da primeira jornada de uma Liga dos Campeões com novo formato
Dominik Szoboszlai durante o Milan-Liverpool da primeira jornada de uma Liga dos Campeões com novo formato

O exemplo 'Champions' para mudar Portugal do avesso (e para melhor)

Pensar no bem maior é o maior desafio que os portugueses terão em breve pela frente. Dada a sua natureza é o também mais difícil, tão fechados que estão sobre si próprios. Mas não há volta a dar

O futebol português parece viver dominado ainda por feitiços antigos. Como se os tempos ainda fossem de rádios a pilhas colados aos ouvidos, visualizando mentalmente jogadas incríveis, e não tivéssemos o privilégio de ver não só um lance, mas praticamente tudo o que acontece nesses relvados pelo país fora, antes de sairmos disparados, porta fora, pelo resto do mundo. Comparando-nos.

Felizmente, ou infelizmente, dependendo de como se olha para o raio do copo, agora vemos tudo e a pobreza salta à vista. O nosso futebol é tão paupérrimo como nós, o que faz sentido, porque quem governa ambos são o mesmo tipo de pessoas que falha em resolver os mesmos problemas. Não estão cá por um bem maior, mas para se governarem a si próprios, enquanto deixarem.

Somos um país que forma como poucos e vende para matar a fome. Ao início, organizamos banquetes com o que ganhamos, depois acabamos a apanhar as migalhas da mesa com a ponta dos dedos. Todavia, quando chega a hora de olhar para dentro faltam espelhos e sobram desculpas. Temos uma Liga longa, que só cresce para os lados, nunca em dimensão. Anda às voltas de si própria, enervada e com frames no lugar de pensos rápidos a tapar-lhe as feridas. Os jogos são muitos, a emoção nem por isso, enquanto os três de sempre dirigem o veículo e os restantes seguem, sem bilhete, pendurados do lado de fora.

Já aqui escrevi que a centralização não chega, que não há mealheiro que valha a pena partir se não estiver cheio. Que se tem de começar de pequeno, nas escolas, e fazer germinar aí a cultura e o gosto pelo desporto. Que vale mais a pena pensar a longo prazo e não do hoje para o amanhã, mesmo que não sejamos nós a beneficiar de todo o trabalho a ser feito. É preciso devolver as pessoas às bancadas e para isso é importante que se interessem. Melhor se se apaixonarem. Ainda mais, se ligarem a paixão a identidade de pertença, que una indivíduo, família, clube e comunidade.

Dos atuais presidentes dos três grandes, sei que André Villas-Boas olha nesse sentido, com a consciência de que quanto mais forte for o todo melhor todos serão individualmente. Percebe-se que procura um bem maior, mesmo que depois seja necessário ainda mais qualidade e competência para se continuar a ser o melhor. Com um Benfica em possível fim de ciclo e um Sporting que dificilmente escolherá ir sozinho, poderemos estar a caminhar para um cenário menos negro. Embora não tão rápido como gostaríamos.

É importante que o presidente do FC Porto fale no número de equipas, no desinteresse em ter uma Taça da Liga que, de cada vez que muda de formato, parece ficar ainda com menos sentido. Temos um campeonato com 18 equipas num país que não tem mercado, massa crítica ou recursos para tal. Há clubes com 300 adeptos em casa e contratos televisivos que pagam pouco mais do que a conta da luz. Jogam-se 34 jornadas, mas em bem menos de um terço se sente o arrepio da verdadeira competição. Os jogos grandes são raros e os pequenos todos iguais. Falta-nos coragem.

A conversa da reformulação dos quadros competitivos não poderá, provavelmente, ser feita na mesma altura que a da centralização de direitos. Numa altura em que se discute o futuro só interessará discuti-lo a quem o possa ter nos mesmos moldes que os outros. Ao mesmo tempo, cada época que passa sem fazê-lo é uma época perdida. É preciso cortar o que está a mais, dizer que não faz sentido o modelo – aos grandes, que jogam 20 jornadas em ritmo de treino, e aos pequenos, que jogando mais entre si menos receitas geram e menos dívidas conseguem pagar –, ainda mais depois de uma Liga dos Campeões que se reinventou para ter melhores encontros mais cedo e mais vezes. Queremos ter mais Sporting-Benfica ou Arouca-Tondela, com todo o respeito por estes últimos?

Seria assim tão mau a Liga ter apenas 14 equipas? Ou 12? E se depois das 26 ou 22 jornadas houvesse uma segunda fase, com mais duas voltas – sim, mais ou menos como acontece na Bélgica –, e metade da tabela a lutar pelo título e a outra pela permanência? Mais clássicos, dérbis e grandes jogos, mais competitividade. Claro que as regras deveriam ser mais apertadas. Só clubes com reais condições para competir poderiam estar entre a elite: casa própria, boa média de público, saúde financeira. Mais abaixo, nos mesmos moldes, haveria uma Segunda Liga profissional igualmente exigente.

Perderíamos alguns clubes, admito. Faz parte da visão e o futebol também é memória. Estes têm de criar forma de serem sustentáveis. Se não o forem nunca poderão competir a médio ou longo prazo, resultando em dívidas, ao Estado e aos funcionários, o que também subverte a competitividade.

Ter mais confrontos entre os melhores aumenta a exigência, melhora o jogo e atrai quem vê. Porque se entre nós podemos viver só com paixão, para os estrangeiros só funciona se houver espetáculo. E o nosso, tantas vezes, não passa do genérico. Tudo isto exige um pacto por um bem maior, algo que os ingleses conseguiram fazer em 1992. Estamos há 33 anos à espera de uma Liga forte, com voz e personalidade, e não apenas agenda e calendário.

O futebol português é especialista em adiar o inevitável. Discutir o acessório. Gritar mais alto do que se pensa, muitas vezes em vez mesmo de pensar. É preciso rumo. Precisamos saber o que queremos. Um viveiro de talento, por exemplo, que convença as pessoas a quererem ver aqui primeiro? Um espetáculo que valha pelo todo? As duas coisas ao mesmo tempo? O que é obrigatório é fazer algo. Acabar com modelos que não têm trazido soluções e apostar noutros.

Porque o futebol português precisa de deixar de apenas sobreviver, de só tentar chegar ao mês seguinte, e começar em definitivo a viver. Precisa de parar de se esconder atrás dos grandes jogadores que continuamos, sem saber bem como e porquê, a produzir, e dos resultados europeus. Precisa de um campeonato que valha por si. O futebol português tem tudo para ser bom. Só precisa de se levar a sério. E isso, por aqui, talvez seja mesmo o mais difícil.