José Mourinho treina hoje os turcos do Fenerbahçe
José Mourinho treina hoje os turcos do Fenerbahçe - Foto: IMAGO

Morrer com a ideia… ou viver com inteligência?

Darwin, no âmbito da teoria da evolução, ensinou-nos que sobrevive quem melhor se adapta ao ambiente, e não necessariamente o mais forte ou o mais inteligente. Uma ideia nascida na ciência, mas que podia ser o lema perfeito do futebol moderno.

Num tempo em que se idolatra o modelo de jogo quase como um dogma intocável, a sobrevivência e o sucesso no futebol não dependem da rigidez das ideias, mas da capacidade de ajustá-las à realidade. Um estilo de jogo deve ser adaptado à cultura do clube e também aos jogadores. E é neste princípio que assenta a crítica aos treinadores que preferem morrer com a sua ideia a viver com inteligência.

Por muito que o futebol moderno se tenha sofisticado, há verdades que resistem ao tempo - e há vozes, como a de José Mourinho, que continuam a desconcertar pela frontalidade com que as expõem. Numa recente entrevista, Mourinho lançou uma provocação que é também, acima de tudo, uma lição: Amigo, se morreste com a tua ideia, és estúpido! Não devias ter morrido.

A frase pode soar dura - porque é. Mas quem quiser ouvir para além do som das palavras vai encontrar nela uma defesa apaixonada da inteligência prática, da adaptabilidade e da liderança consciente e eficaz. Mourinho não está a atacar a integridade das ideias. Está a defender a inteligência do contexto. E essa, no futebol e na vida, vale ouro.

Vivemos tempos em que a estética parece ter ganho terreno ao pragmatismo. Em que treinadores jovens se agarram a modelos idealizados - muitas vezes copiados de gurus internacionais - e se recusam a abdicar do seu conceito de jogo, mesmo quando tudo à sua volta grita que não vai resultar. E quando o fracasso chega, ainda afirmam com orgulho: Morri com a minha ideia.

Pois bem. Morreste. E de quê serviu?

No futebol, a convicção é uma qualidade, mas a teimosia é um defeito. Um treinador não é apenas um estratega. É um motivador, um influencer de comportamentos, um gestor de recursos, um descodificador de pessoas e ambientes. Ter um ideal de jogo é fundamental. Claro que é. Não digo o contrário. Um ideal funciona como uma bússola: dá orientação e direção. Mas não é um GPS infalível. A estrada muda. O trânsito complica. A viatura às vezes é outra. E quem não souber reajustar a rota arrisca-se a nunca chegar ao destino.

A história do futebol está repleta de ideias bonitas e equipas que jogavam muito à bola… mas que perdiam. Os grandes treinadores — e Mourinho é um dos maiores de sempre — não venceram e ficaram famosos por jogarem sempre da mesma forma. Ficaram com o nome gravado a ouro na história do futebol porque souberam liderar pessoas antes de treinar atletas. Souberam guiá-las ao sucesso, extrair o melhor de cada uma e vencer em palcos e contextos diferentes. Já assumi publicamente que gosto genuinamente de Mourinho. Já fui criticado por isso, mas nunca virei as costas aos meus — e ele é um dos meus. Quem é meu, sabe-o.

Conhecemo-nos há 20 anos e, por isso, não consigo separar o que ele representa para mim da gratidão e do respeito que lhe devo. Mas uma coisa é pessoal, outra é factual: ninguém, com seriedade, pode colocar em causa aquilo que Mourinho conquistou. José Mourinho venceu em Portugal, Inglaterra, Itália e Espanha. É, até hoje, o único treinador a conquistar todos os troféus europeus de clubes. E fê-lo não por impor um modelo único ou uma filosofia inflexível, mas por saber ler o jogo fora das quatro linhas: adaptar-se ao contexto de cada clube, às exigências de cada campeonato e às características do grupo de jogadores que tinha à disposição. O seu sucesso nasceu da capacidade de interpretar o ambiente, gerir pessoas e ajustar ideias para transformar equipas em campeãs. É por isso que acredito que, na Turquia, também deixará a sua marca de vitória — se o clube lhe der as condições para tal. Mas essa é outra discussão, e não o tema central deste artigo.

Além de JM, recordo Guardiola que venceu em Barcelona, Munique e reinventou-se no City. Klopp adaptou-se ao Liverpool. Ancelotti e Luís Enrique são outros dois exemplos máximos da inteligência tática ao mais alto nível. Nenhum génio sobreviveu a longo prazo por teimosia.

É por isso que Mourinho diz: Eu também tenho o meu ideal e construí o meu ideal quando o podia construir. Quando? Quando teve os jogadores certos. O contexto adequado. O tempo necessário. A estrutura que permitia emergir o tal ideal. O ideal, por mais puro que seja, não pode viver isolado da realidade própria de cada clube. Se não há um central rápido, não é possível jogar com a linha subida. Se os avançados não pressionam, não servem de exemplo ao modelo do Guardiola. Se os médios não sabem construir, não há saída de bola apoiada que resista. Se os laterais não têm profundidade, jogar em 3-4-3 com alas projetados é suicídio. Se não há um ponta-de-lança capaz de segurar a bola no jogo direto, os lançamentos longos só vão entregar a bola ao adversário. Se o guarda-redes não tem jogo de pés, tentar começar cada ataque pelo chão é pedir para sofrer golos evitáveis.

Um treinador com ideias fixas que se recusa a adaptar-se ao que tem à disposição está a falhar numa das suas principais obrigações: servir a equipa. Servir os jogadores. Servir o clube. Servir os adeptos. Não é ele que joga. São onze, com qualidades, limitações e estados emocionais. Um treinador-líder eficaz não é o que força os jogadores a se adequarem à sua ideia. É o que molda a sua ideia base à medida dos seus jogadores e os faz acreditar nessa mesma ideia.

A nova geração de treinadores é mais estudada do que nunca. Mas também é, algumas vezes, mais vaidosa. Há quem confunda identidade com rigidez. Há quem ache que ceder ao contexto é trair os seus princípios. Quando, na verdade, é o contrário: é honrá-los. Adaptar-se não é desistir. É resistir. É encontrar o caminho possível para continuar a lutar pelos mesmos fins.

Mourinho, ao chamar «estúpido» a quem morre com a sua ideia, está a provocar? Sim. Mas está também a ensinar. Está a dizer: pensa. Ajusta. Sobrevive. Aprende. Cresce. Porque liderar é, também, ler os sinais, tomar decisões difíceis quando o contexto exige, e nunca perder o foco do essencial: a equipa.

Morrer com a ideia pode parecer nobre. Dá bons títulos para publicações e stories nas redes sociais. Dá entrevistas poéticas. Mas viver com inteligência dá vitórias. Dá equipas competitivas. Dá carreiras longas.

E, no fim, é isso que separa os idealistas dos líderes. Os teimosos dos estrategas. Os que morrem com ideias dos que constroem ideias para vencer. Goste-se ou não, José Mourinho construiu sempre ideias com um propósito claro: ganhar. E a sua carreira é o reflexo dessa excelência prática — feita de inteligência adaptativa, liderança contextual e uma impressionante coleção de vitórias e títulos nos principais campeonatos e em todas as competições europeias. Não venceu porque teve sempre a melhor equipa. Venceu porque soube ser um líder eficaz e soube retirar o melhor dos jogadores que tinha à sua disposição.

«Liderar no Jogo» é a coluna de opinião em abola.pt de Tiago Guadalupe, autor dos livros «Liderator - a Excelência no Desporto», «Maniche 18», «SER Treinador, a conceção de Joel Rocha no futsal», «To be a Coach» e «Organizar para Ganhar» e ainda speaker.