Bino explica como, ao ser injusto com Tomás Soares, teve um goleador no Mundial

Treinador lembra que Anísio cresceu muito desde o Europeu porque manteve a sua aposta nele

— O Anísio marcou sete golos, foi o segundo melhor marcador no Mundial. Valorizas mais os golos ou o que ele fez em termos de trabalho coletivo da equipa? A pressionar alto quando era preciso pressionar, a correr atrás da bola, a correr atrás dos adversários, o apoio frontal que dava muitas vezes para a equipa poder subir em campo?

— Valorizo o crescimento do Anísio do Europeu para o Mundial.

— Fala-me disso então…

Vocês sabem que ele não fez um grande Europeu. No entanto, foi sempre titular da minha equipa. E nós tínhamos o Tomás Soares, que estava constantemente a entrar e a fazer golos e, eventualmente, merecia jogar a titular. Achei que o Anísio, pelas características e pelo conhecimento que tenho de todos os jogadores, devia ter continuidade. O crescimento que ele teve daí para o Mundial e a forma como ele entrou neste Mundial veio sustentar aquilo que eu tinha feito, tendo sido algo injusto com o Tomás Soares, mas por um bem maior. E tivemos o Anísio a 100% agora, a entrar forte, com muito mais vontade, muito mais confiante do que se eu o tivesse tirado nessa altura. Se o tivesse tirado, eventualmente teríamos o Anísio mais desconfiado, menos confiante e a não saber se o treinador confiava tanto nele ou não. E isso para alguns jogadores é fundamental no processo de crescimento também. Nós dizemos que gostamos de ser justos com todos e que as regras são para todos, mas há jogadores que agem e pensam de uma forma especial e temos de nos adaptar e tentar perceber como é que podemos encaixar toda a gente no caminho que queremos seguir, sabendo que são todos eles diferentes uns dos outros. E ainda bem. Digo-o agora, a posteriori, porque tento fazer sempre uma avaliação daquilo que faço, quer ganhe ou perca. Acho que as coisas correram bem e eu acho que fiz as coisas bem nessa altura.

— E falaste com o Tomás?

— Falei.

— E como ele reagiu? Reagiu bem?

— Reagiu muito bem, porque quando se diz a verdade aos jogadores, mesmo sendo miúdos, em qualquer idade, eles percebem perfeitamente que... Porque às vezes a dúvida é eles pensarem ‘Ah, não jogo porque ele gosta mais do outro, não gosta tanto de mim’. Ou ‘ele acha que o outro é melhor e que eu sou mais fraco do que ele’. E não é nada disso. É um bocadinho o desconstruir isto que faz com que os jogadores fiquem mais serenos.

— Aos 17 anos, eles já começam, de certa forma, a decompor-se de acordo com as próprias características e acabam a perceber que ‘se calhar ele tem determinadas características para este modelo' que o próprio não tem e por isso é que não joga? Ou ainda não pensam assim?

— Pensam porque estamos numa era em que se fala tudo, em que eles ouvem tudo, para o bem e para o mal, porque depois até são comparados com as grandes estrelas e isto é preciso ter uma mentalidade forte, ter um contexto familiar muito bom em que eles podem assentar, ter um empresário que tenha algum cuidado com isto, ter gente nos clubes que os consigam pôr também com os pés no chão, porque acaba por ser um deslumbramento… Estamos a falar de miúdos de 17 anos. Quando eu ouço, por exemplo, compararem o Mide ao Vitinha, sei lá, o Banjaqui a outros...

— Um Nélson Semedo, eventualmente…

— Sim, sim, sim. Não é fácil para eles perceberem ou saberem distinguir isto e terem a proporção certa disto. É importante terem os pés bem assentes no chão e perceberem que há um caminho longo. Nem acho justo essa comparação e por isso é que eu digo, ‘calma, porque há um caminho que vocês têm ainda de  percorrer, que é difícil’. Nós podemos ter bons momentos na nossa carreira, mas para termos uma carreira de sucesso, temos de ter consistência. E, por isso, o bom exemplo do Cristiano, os anos que ele teve de sucesso são consistência, consistência de trabalho, do que fazer de trabalho invisível, que é fundamental hoje em dia, porque cada vez o jogo está mais rápido, mais físico, todo esse trabalho é fundamental e não vem só do ‘ah, eu jogo bem e está feito’. E é todo um processo que nós gostamos que eles tenham em mente, que é muito difícil. Quando nós falamos de percentagens de jogadores que passam pelas seleções e pelos clubes grandes e que chegam a profissionais e à primeira equipa, esta acaba por ser pequena. E nós queremos que esta geração possa ser aproveitada, quer nos clubes, quer depois para a nossa seleção, porque também valida um bocadinho aquilo que é o nosso trabalho.

— Nota-se muito, sobretudo, no fim dos jogos, quando eles vão às entrevistas rápidas, que o discurso não é um discurso de...

É do treinador, não é? É um discurso do treinador.

— Não só é um discurso do treinador, mas mesmo que não seja, as palavras dele revelam discurso muito maduro. Não é um discurso normal para quem tem 15, 16, 17 anos. Obviamente também há um trabalho da Federação, mas há um trabalho dos clubes em criar jogadores cada vez mais maduros e preparados.

— Claro, claro. Mas isso é inquestionável. Aproveitamos o bom trabalho que os clubes fazem. E nós agradecemos porque cada vez se trabalha melhor, porque cada vez há melhores condições. Cada vez há mais aposta em jovens cada vez mais novos, que precisam de crescer rápido. Quando nós falamos aqui dos Quendas, dos Moras, são esses exemplos também que estes miúdos procuram de perceber, que também podem chegar aí rapidamente, embora tenha de haver aqui uma calma e sabermos interpretar… Cada jogador é um mundo diferente e cada contexto é um contexto diferente, e temos de ter aqui algum cuidado. Mas sim, é um trabalho que já é feito e, cada vez mais cedo, eles começam a ter essa noção. Quando se ganha o que nós ganhamos, o meu receio às vezes é que haja esse deslumbramento e que eles cheguem aos clubes e que pensem que, por si só, já têm de ser titulares. Mas não é assim. O trabalho tem de estar sempre presente. É o que lhes disse: ‘Quando sairmos daqui, a responsabilidade que vocês ganharam agora é maior em todas as vertentes e, por isso, se vocês já trabalhavam bem vão ter de demonstrá-lo mais ainda’. Se vocês não o fizemos haverá outros que vão passar a perna naturalmente, porque o futebol é evolução.