Todas as noites de sextas-feiras e manhãs de sábado num dos locais mais icónicos da cidade de Lisboa ficam marcadas pelos treinos de uma equipa que devolvem os sonhos retirados pela realidade a dezenas de atletas

Alameda FC: o 'clube' inclinado de Lisboa que alimenta o sonho imigrante

O relvado superior de um dos mais ilustres marcos da capital é o centro de treinos de cerca de uma dezena de atletas de ascendência africana. De um grave conflito entre adeptos de Sporting e Benfica surgiu um projeto improvável que já aponta a escalões competitivos

O desfile de viaturas em marcha intermitente e de transeuntes guiados pela pressa de chegar transportam-nos para as últimas horas de uma sexta-feira como todas as outras. A proximidade do fim de semana potencia a impaciência de quem está refém da cor de um semáforo, do tempo de espera do transporte público ou simplesmente da lista de tarefas por cumprir até a chegada ao lar.

A azáfama característica da porta de entrada para o fim de semana na cidade de Lisboa tem um epicentro dicotómico na Alameda Dom Afonso Henriques. O festival de quatro rodas ao ritmo de buzinadelas ocasionais no alcatrão contrasta com a calma de quem encontra na relva um teatro dos sonhos para uma vida de sacrifício. A coluna de ventilação adjacente ao jardim superior foi o local encontrado por Alex e pelos colegas de equipa para trocar de roupa, antes de mais um treino do autoproclamado Alameda FC.

Um dérbi interrompido, um convite religioso recusado e um sonho adiado

O luso-guineense, cada vez mais um híbrido entre jogador e diretor técnico, recua até a 27 de junho de 2009 para explicar a origem inusitada do clube que encontrou casa no coração de Lisboa: «O Alameda nasceu após um jogo entre os juniores do Sporting e os do Benfica [interrompido por confrontos]. Houve brigas graves.» O acontecimento que obrigou ao adiamento da partida da última jornada da fase de apuramento de campeão de juniores da época 2008/2009 é o ponto de referência temporal para Alex, que tinha trocado a Guiné-Bissau por terras lusas, dois anos antes.

O atleta, ainda menor de idade, rumou a Lisboa guiado pelo sonho das quatro linhas e pouco depois realizou um teste no Benfica, clube do coração. Alex acabou por se juntar aos escalões de formação encarnados, mas por pouco tempo. Ao afastar-se do Seixal, o luso-guineense aproximou-se pela primeira vez da zona da Alameda… pela porta da igreja. Mesmo sendo muçulmano, integrou a equipa de futebol da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), cuja sede se localiza na rua paralela ao centro de treinos do Alameda FC.

«Como não ia ao Seixal precisava de competir. Quando voltei para o Benfica levei quatro vacinas e para quem vem de África, não é fácil adaptar. Deixei de ir ao Seixal», recordou Alex, que debateu contra a própria fé em prol de continuar a sonhar com uma carreira profissional.  

Semi-cerrada a porta do Benfica, a janela da IURD abriu-se… mediante uma condição: «Disseram-me ‘se não vais na nossa reza, não jogas connosco’». Alex pensou seriamente em apostar as fichas todas na equipa evangélica, até ouvir os conselhos da progenitora: «Ela disse-me ‘foste para tão longe, tens de escolher o futebol. Mas és muçulmano, não podes misturar as coisas como se fosses um homem sem ideias.’»

O campo do Alameda Futebol Clube situa-se a poucos metros da sede da IURD (André Carvalho)

Alex manteve-se fiel aos princípios e encontrou uma solução para manter a forma a poucos metros de distância do desafio que rejeitara semanas antes. Em 2009, a Alameda tornou-se no ponto de encontro de atletas, habitualmente imigrantes, interessados em continuar a treinar enquanto procuravam clube. «Muitos jovens que não se conseguiram adaptar à rotina de treinar no Seixal e em Alcochete e voltar para Lisboa. A maioria acabou a viver no centro de estágios, mas há quem tenha ficado de fora», recordou Alex, apontando este êxodo de talento como um dos motivos da criação de um clube informal.

16 anos, um sonho

 Praticamente todas as noites de sexta-feira e manhãs de sábado dos últimos 16 anos da vida do luso-guineense passaram pelo relvado da Alameda, com a bola no pé e um sonho na cabeça.

Alex, um dos únicos resistentes das primeiras equipas do Alameda, assume a responsabilidade de comandar os destinos de um projeto ainda sem casa plana, mas bem mais organizada. Os treinos são combinados a partir de um grupo nas redes sociais mediado pelo mesmo responsável pelas bolas e balizas, colocadas nas posições corretas antes de cada de treino pelos primeiros atletas a chegar ao teatro dos sonhos imigrantes.

Alex é a voz de comando dentro de campo (André Carvalho)

O grupo disponível muda «da noite para o dia» de acordo com o atual figurante de novelas e conteúdos publicitários, mas o objetivo de fomentar a integração de quem chegou a Portugal sem qualquer suporte mantém-se intacto. Alex destaca que «meia hora na Alameda é muito melhor do que três horas fora» para quem vive situações delicadas seja ao nível da «documentação, área de trabalho ou de problemas criados por culpa própria.»

«É psicológico. Vêm um, dois, três e começam a perceber que isto é um refúgio. Estás a ganhar família, amigos, colegas e até inimigos porque às vezes não conseguem aceitar a realidade», explicou o diretor improvisado, defensor da importância da abertura dos imigrantes à cultura lusa.

Alex não abdica do 'seu' Benfica (André Carvalho)

A volatilidade quantitativa e qualitativa do grupo de trabalho não amedronta e até incentiva Alex, mais preocupado com o principal entrave ao crescimento do Alameda FC.

Futebol inclinado... à força

Quando Alex se juntou à equipa, os treinos tinham lugar no relvado inferior da Alameda, com vista para a fonte luminosa, marco histórico da arquitetura e da vida lisboeta. A coexistência de treinos intensos, competitivos e por vezes propulsores de bolas perdidas com a tranquilidade de quem relaxava na relva rapidamente escalou para um impasse. «Apareciam muitas senhoras com cães, apesar dos avisos. Começaram a chamar a PSP. Entretanto mudámos de campo, fomos obrigados», admite Alex, consciente do impacto da mudança para o relvado superior, com vista inclinada para o Instituto Superior Técnico.

Apesar da curta distância entre os dois espaços, esta troca precipitou mais um desafio aos perseguidores da essência do desporto-rei de chuteiras calçadas num relvado pouco talhado para a modalidade. Os atletas procuram contornar a inclinação elevada do campo através da realização de treinos no retângulo mais regular possível e da procura de alternativas… planas.

A inclinação do relvado é evidente, mas não é um entrave (André Carvalho)

Os duelos disputados contra equipas do INATEL e da terceira divisão distrital lisboeta, realizados na época passada, foram preparados em campos de relva sintética, para os atletas perceberem a diferença entre «jogar futebol» e «jogar à bola» e  desenvolverem o conhecimento do jogo, de acordo com Alex. A adaptação dos atletas a relvados sintéticos, para suavizar a transição e acautelar lesões, marca o primeiro passo de uma caminhada até à realização de todos os treinos num campo plano.

«Ter campo é fundamental. É a principal dificuldade, o resto resolve-se. É difícil, mas é mais importante não desistir. Se dependesse de mim não demorava um ano [a transição definitiva para um relvado plano]. Mas quando queremos alguma coisa temos de trabalhar para isso.», destacou Alex, o patrão da equipa, dentro e fora de campo.

O atleta já trintão ocupa uma posição mais recuada, mas cerebral no 5x5 de uma noite de sexta-feira como qualquer de sexta-feira. A camisola do Benfica relativa à época 2023/24 a ligação inquebrável ao clube da Luz. Quando é questionado sobre as preferências clubísticas dos colegas, Alex convita à auscultação das histórias dos colegas: «Só falo de mim, cada um tem muito para contar.»

Na segunda parte desta reportagem, as histórias de dois imigrantes guineenses cruzam-se no retângulo verde de todos os sonhos.