Fernando Santos: «No dia em que o telefone tocar Cristiano Ronaldo sabe que estou cá»
Fernando Santos A BOLA/André Filipe

ENTREVISTA Fernando Santos: «No dia em que o telefone tocar Cristiano Ronaldo sabe que estou cá»

A BOLA TV08.11.202308:16

Antigo selecionador nacional abriu o livro A BOLA.

Onze meses depois de ter deixado o cargo de Selecionador Nacional, na sequência do Campeonato do Mundo, Fernando Santos abre o livro sobre as escolhas que fez no Catar, nomeadamente a que deixou o capitão fora do onze nos jogos com a Suíça e Marrocos. Algo que, garante, voltaria a fazer. Nesta primeira parte de uma longa entrevista, o treinador confessa perceber a mágoa de CR7, revela não falar com ele desde então e mostra-se de braços abertos para retomar uma «relação muito forte».

– Não fala com Cristiano Ronaldo há quanto tempo?

–Isso é outra coisa… [pausa] … Já não falamos... Não sei qual foi o dia… Já não falamos desde que eu vim do Catar.

– Não falam desde a véspera do jogo com a Suíça? 

  Não, isso não tem nada a ver com o jogo da Suíça. Eu tinha uma relação fortíssima com o Cristiano. Pessoal. Para além da relação profissional. Conhecemo-nos no Sporting quando ele tinha 19 anos, e essa relação foi reforçada a partir do momento em que nos encontrámos na Seleção. Sempre nos demos muito bem. A expressão é um bocadinho forte, mas, quase como pai e filho, ou irmão mais novo e irmão mais velho. Tínhamos uma relação muito estreita, muito forte, quer profissional, quer pessoal. E, portanto, uma coisa não teve nada a ver com outra. Eu tomei uma decisão que foi estratégica no Catar. É preciso compreender um pouco. Eu acabei de dizer que ele é o melhor do Mundo. E é. Mas teve um momento da carreira que foi muito difícil. No segundo semestre de 2022 ele tem seis meses que são terríveis. Mesmo no aspeto anímico. Começa logo naquela infelicidade que se abateu sobre a sua casa e sobre a sua família, que nenhum de nós quererá passar [morte de um de dois filhos gémeos]. Esse momento mexeu muito com ele e depois é a parte desportiva. O Cristiano não fez pré-época. Esteve dois meses sem treinar. Depois o Cristiano volta ao Manchester United, mas praticamente não é utilizado. Se me perguntar se o Cristiano física, e individualmente, estava no top, digo-lhe que estava. Estava porque ele vai estar sempre. Ninguém cuida melhor do corpo, e da sua performance, como ele... Se fôssemos fazer testes, individualmente, ele estaria no top. Não temos dúvidas em relação a isso. Eu não tenho. Sabe?, havia muita gente que achava que ele não devia jogar e que me criticava por isso, mas eu conheço-o melhor que ninguém. De qualquer forma, em termos de ritmo do jogo foi o pior momento dele. Ele não tinha ritmos. Nós tentámos, durante aqueles jogos antes do Campeonato do Mundo, e depois nos primeiros jogos do próprio Campeonato do Mundo, que ele entrasse nos ritmos do jogo, que era aquilo que lhe estava a faltar. O resto não lhe faltava nada. Se ele fosse fazer um sprint com um colega qualquer, ou fosse fazer uma prova de resistência, ele se calhar ganhava. Não tem a ver com isso, Era uma questão estratégica. Eu senti durante os primeiros jogos que estrategicamente para Portugal era melhor. E para ele também podia ser melhor. O pensamento era assim: ‘Eu quero mudar um pouco isto, preciso de alguém com mais este tipo de características.’ Mas ele continuava a ser muito importante.

– Se fosse hoje…?

–Tomava a mesma decisão! Foi uma decisão estratégica. Em primeiro lugar tenho de pensar na equipa. Eu achei que estrategicamente era a melhor decisão. Eu e a minha equipa técnica, até porque como compreenderá nós discutimos este assunto, não foi uma decisão leve. Até pela questão pessoal, de amizade e outras, pois ele tinha um peso grande. É verdade. Mas eu tinha uma decisão estratégica maior, achava que era melhor. Não quer dizer que o Cristiano não fosse entrar, até porque ele iria entrar, e poderia jogar de início no jogo a seguir. Mas o jogo correu tão bem, tão bem com a Suíça que no jogo a seguir não fazia nenhum sentido mudar. Só troquei uma peça, o William pelo Ruben Neves. Mas sempre convencido de que, a qualquer momento, o Cristiano ia lá e se fosse preciso resolveria o jogo. A minha confiança nele era igual. Todos os que lá estávamos achávamos que íamos ser Campeões do Mundo, sabe? A minha convicção, e a dos jogadores, era igual à de 2016. Mas pronto, não aconteceu. Se tivéssemos ganho a Marrocos, e perante o adversário que vinha a seguir [França], se calhar o Cristiano era titular.

– A saída dele da equipa nada teve a ver com o jogo contra a Coreia?

–Nada! Zero! Esqueça. Eu já tive muitos casos desses e nunca tive problemas com ninguém. Acha que ao longo de 35 anos de carreira nunca houve jogadores que olharam e falaram para o lado? Sempre resolvi isto com os meus jogadores a conversar, como fiz com ele, como é natural. Agora, é verdade que no dia do jogo, de manhã, quando lhe fui explicar que ele não ia jogar e o porquê de não ir jogar, ele interpretou mal. Se eu percebo a reação dele? Percebo! Já referi que aquele período foi de grande ansiedade para ele, percebo a reação porque para ele é um grande amigo que o deixa fora. Mas eu não me podia orientar por aí, percebe? Eu continuo igualzinho com ele. Da minha parte a relação é a mesma e ele continua a ser como um filho ou um irmão mais novo para mim. No dia que o telefone tocar ele sabe sempre que eu estou cá. Isso é garantido. Eu sei que isto magoa, sei que doeu muito. Mas a vida é assim. Eu já tive um caso, que não é bem igual, mas similar. Eu tinha uma relação muito boa com o Bruno Alves. Peguei nele no FC Porto, levei-o para a Grécia, foi um jogador que cresceu comigo e mantivemos uma relação fantástica. Há um momento em que na Seleção deixo de o convocar e o Bruno nas primeiras vezes quase nem me falou… Depois passou.

– Tem esperança que aconteça o mesmo com o Cristiano Ronaldo?

– Não é uma questão de esperança. Isto pertence a Deus, não é uma questão de esperança, estas coisas não podem ser vistas assim. Eu acredito que um dia vamos encontrar-nos, vamos olhar um para o outro e pensar: ‘Nós sempre tivemos esta relação’. Da minha parte não há mágoa. Percebo que na altura ele tenha ficado magoado, e percebo que se calhar continua magoado. Mas a relação que nós tivemos não é uma relação qualquer. Uma coisa que sempre disse aos jogadores, e que sempre fiz, e por isso talvez esta relação que eu consiga ter com eles, é que separo muito bem o profissional do homem. Mesmo na minha relação, por exemplo, com Pinto da Costa. Costumo dizer que convivi com dois. Separo muito bem as águas. A minha relação com o Cristiano não se alterou em nada. Espero que um dia mude a situação atual. Se não acontecer, paciência. Fico triste, mas pronto…