Voltemos a gostar de futebol
Um pelado abandonado (Foto: IMAGO / Jürgen Schwenkenbecher)

Voltemos a gostar de futebol

OPINIÃO03.03.202409:00

Deixámos de gostar do jogo tal como é, o primeiro sinal de uma relação que se deteriora

Gostar de bola é não sentir o peso do barro nas meias, a cal a queimar canelas acima, o frio a dar-nos chapadas nas ventas. É não aceitar rendições quando as nuvens abrem as comportas e o dilúvio se abate sem Arca de Noé à vista.

Esmurremos o escudo do equipamento de má qualidade, fazendo cara de neozelandês no haka, enquanto o bairro ferve junto a barreiras que mais parecem cancelas sem guarda e o GNR tateia o cassetete, preparando-se para sacar. 3, 2…

A gritaria que nos incendeie. Mordamos a língua como João Neves em hora de ponta ou Michael Jordan a voar sem radar, decidamo-nos a ser super-heróis uma vez na vida, Maradonas de pele e osso a descobrir barriletes cósmicos pelas distritais.

Gostar do jogo é parar, voltar atrás, deixar em repeat o drible com que Bergkamp desmonta Dabizas e tentar pôr por ordem todas as peças desse puzzle interminável. É fintar raízes expostas, saltar fossos com vida-dupla como linhas laterais e aterrar sempre de pé, enquanto não chegam o dia das captações e as perguntas com resposta única em teste de escolha americana: médio ofensivo, mister! Como poderia haver dúvidas, mano?

É ficar a admirar postes e traves roubadas à construção civil, enquanto ladrão que rouba ladrão não os leva e garante os prometidos cem anos de perdão. É gravar jogadas de Domingo Desportivo em VHS por cima da novela das 9, que os velhotes adormecem sempre antes que termine, acordando a ranger do pescoço aos joanetes por culpa do maldito sofá. Mais ainda se é Inverno. É treinar na terra batida dos sonhos, festejar junto ao espelho mil e uma celebrações e ser o ventríloquo da loucura das bancadas. Depois, repetir tudo uma e outra vez até sair bem.

Estarmos apaixonados é fingirmo-nos de mortos e não nos levantarmos de manhã à noite do sofá nem os olhos da televisão, ao mesmo tempo que os nossos amigos ganham ao sol o seu bronze mais sedutor. É combinar aquela futebolada tantas vezes adiada e não voltar atrás mesmo que a nossa namorada tenha sido deixada sozinha em casa pelos pais pela primeira vez.

Lembro-me de não precisar de árbitro, quando mais de VAR, a não ser que a disputa fosse contra o dono da bola, que amuava e ia para casa.São esses talvez os treinadores e dirigentes de hoje, tal a forma como reagem quando contrariados. Mas nesse tempo, havia sempre consenso.

Não deixemos que se complique ainda mais o que é simples, que se plastifique a festa, estrangulando-a, para a libertar frouxa e descolorida, nada natural. O erro existe e nunca irá desaparecer, por mais tecnologia que se invente. O que nunca se conseguirá substituir é a sua aceitação. Deveríamos questionar-nos: tudo isto é para o bem do futebol ou pela nossa consciência? Como está mesmo a nossa relação com o jogo? Ainda sentimos mesmo algo um pelo outro?

Gostar de futebol é aceitá-lo tal e qual como é. Imperfeito. Com defeitos. Subidas e descidas, pobres e ricos, vencedores e vencidos. É ser de um Sunderland qualquer até morrer e viver o que a vida nos dá. Apaixonados e felizes para sempre.