Cá dentro inquietação
Sérgio Miguel Santos/ASF

Opinião Cá dentro inquietação

OPINIÃO10.10.202312:02

«Selvagem e sentimental», a opinião de Vasco Mendonça

Talvez seja uma tontice sentir tantas dúvidas quando o Benfica acaba de somar a sétima vitória consecutiva na liga, mas é aqui que me encontro. Suspeito que não estou sozinho. Sete vitórias consecutivas, duas vitórias consecutivas contra o FC Porto pela primeira vez em quase 13 anos, e um troféu conquistado num desses jogos. Não é bem síndrome do impostor, mas antes sofrimento por antecipação. É sempre assim: quando somos muito felizes e nos apaixonamos, como aconteceu há um ano, fica connosco a memória desse tempo, mas, mais do que isso, fica connosco o apetite.

O futebol é assim desde que me lembro. Os dias repetem-se e vamos dando por isso, mas nem por isso uma pessoa desarma. Estamos sempre a tentar voltar a esse lugar da felicidade passada. Tentamos as vezes que forem necessárias até confirmarmos uma de duas hipóteses: ou a história se repete e afinal é possível reviver um sentimento que parecia irrepetível (mas que nós adeptos exigimos todos os dias das nossas vidas), ou a desilusão entra em modo gegenpressing e impõe-se, pelo menos durante um tempo, o tempo suficiente para fazer vítimas, até algo ou alguém nos dar razões para voltarmos a sonhar.

Vem isto a propósito de Roger Schmidt e do Benfica 2023/2024. A segunda época de um treinador nunca é fácil, mas esta é uma missão especialmente complicada. Schmidt chegou, viu e, num ápice, encantou o futebol português com uma ideia de jogo tão esfomeada de vitórias quanto os benfiquistas. Juntou a isso uma civilidade quase irritante e a capacidade de comunicar quase todas as suas opiniões ou decisões de um modo que todos percebiam e, mais importante ainda, apoiavam. Roger Schmidt teve ao seu dispor um plantel rico e altamente motivado para abraçar a mudança tática. O grupo teve vários esteios, mas foi abrilhantado por três jogadores formidáveis que entretanto saíram: Enzo, Grimaldo e Gonçalo Ramos. Um fora de série, um lateral muitíssimo produtivo e um avançado de eleição. Todos souberam encaixar perfeitamente nas ideias de Schmidt, e todos atingiram com Schmidt o pico do rendimento desportivo das suas carreiras mais ou menos curtas.

Foi sem estes três jogadores que partimos para uma nova época, e a diferença é muito grande. Os sinais evidenciados pela ausência de Enzo foram atenuados no fim da época passada pelo aparecimento de João Neves, mas esta época verificamos que, não obstante a qualidade da matéria-prima - Kokçuu, João Neves, Florentino, Aursnes ou até João Mário -, o meio-campo está muito longe da produção da primeira metade da época passada. Quando digo muito longe, quero dizer demasiado longe, especialmente se olharmos para o calendário e verificarmos que já estamos em outubro e somamos duas derrotas numa fase de grupos da Champions que temos obrigação de tornar um pouco mais acessível. A par desta fragilidade no meio-campo, junta-se a sensação de que nem todos os reforços, ou quase nenhum deles, produz exatamente o que é esperado ou parece capaz de jogar à la Schmidt. Podia analisar um a um, mas vou deter-me numa explicação do treinador do Benfica dada há poucos dias quando lhe perguntaram pelas dificuldades de Arthur Cabral nestes primeiros meses. Schmidt explicou que o jogador estava habituado a jogar mais sozinho na área e que agora seria necessário adaptar-se a uma nova ideia de jogo. Independentemente dos primeiros indicadores do avançado brasileiro, que não foram animadores, apetece perguntar se não teria sido melhor contratarmos alguém que estivesse mais próximo das ideias de Schmidt e pudesse produzir um impacto mais imediato, neste caso sob a forma de golos, golos esses que já faltaram em alguns jogos esta época.

E depois há o próprio Roger Schmidt. Não me parece prematuro afirmar que o treinador do Benfica está diferente desde a época passada. Parece mais hesitante e confuso em alguns momentos, parece um pouco desanimado e apático noutros. Depois de uma época a jurar lealdade a um onze titular, Schmidt tem revelado uma tendência quase crónica para as mexidas no onze, muitas vezes sem que tal produza os efeitos desejados, antes ou durante o jogo. A expressão mais preocupante desta tendência aconteceu este fim de semana no Estoril, onde uma revolução no onze resultou na pior exibição do Benfica desde que Roger Schmidt chegou a Portugal. O golo de António Silva fez tudo valer a pena, mas não permite mascarar a carga de trabalho que esta equipa tem pela frente para se tornar um pouco mais fiável. Não tenho ilusões. É um facto que não há pedagogia nem conversa que faça esquecer um jogo mal jogado como o deste último fim de semana, mas até nisso se sente uma certa falta de ânimo em Roger Schmidt, cuja gestão de expectativas tem atingido níveis perigosos. Aconteceu há uns dias quando Schmidt explicou que será muito difícil o Benfica repetir a época passada e voltou a acontecer no rescaldo da vitória contra o Estoril, quando Schmidt explica que a exibição não importa, o que importa é ganhar. Percebo o que Schmidt quer dizer, mas confesso que tanto pragmatismo me apanhou de surpresa, porque vem de alguém que parece ter compreendido muito bem, desde o primeiro momento, o que é a exigência do Benfica, no que tem de racional ou até no que tem de irrealista.

Quem representa um clube tão grande e exigente tem de saber no que se está a alistar. Schmidt, que já deu muitas provas de compreender o Benfica, não se deve esquecer disso. É na sua capacidade de compreender e reagir adequadamente a cada momento, bem como na capacidade de melhor adaptar as peças que tem aos tabuleiros em que joga, que se joga o futuro do Benfica esta época. Schmidt pode até pensar que será muito difícil atingir o nível da época passada, mas deve morrer a tentar. Precisamos rapidamente de ver mais.

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