RD Congo: CAN serviu para mostrar a ferida dos Leopardos
Que o desporto e causas sociais andam de braço dado, já não é segredo. Não é necessário recuar muito para vermos causas defendidas dentro das quatro linhas, ou pelo menos à margem do terreno de jogo: a Taça Asiática foi exemplo disso, com a seleção da Palestina a usar a visibilidade da competição para chamar a atenção do mundo para o conflito em Gaza.
No Campeonato Africano das Nações não foi diferente, com a seleção da República Democrática do Congo, que ficou em quarto lugar, a aproveitar a competição para tentar alertar o mundo para a crise humanitária no país.
Até o momento do hino foi aproveitado para marcar posição, com os jogadores a tapar a boca com uma mão, enquanto com a outra mão fazia de arma apontada à cabeça.
«Eles estão a matar em silêncio» e «nunca mais sozinhos», foram as frases utilizadas para vincar a posição.
Merci d’avoir porté haut la cause des victimes des atrocités commises dans notre pays.
— Fonarev RDC (@FonarevRDC) February 8, 2024
Merci d’avoir parlé au monde entier des massacres qui se vivent en RDC.
PLUS JAMAIS SEULS !#Fonarev #PlusJamaisSeuls #NoMoreAlone #RDC #Genocost pic.twitter.com/vwAmw7WnnW
Afinal, o que está a acontecer na RD Congo?
A RD Congo atravessa uma crise humanitária descrita por organizações internacinais como silenciosa. Desde 1996 que cerca de seis milhões de congoleses já foram mortos no leste do país, e os números continuam a aumentar.
De acordo com dados da Organização Internacional para as Migrações, o conflito já deslocou mais de 6,9 milhões de pessoas. O Banco Mundial estima que uma em cada seis pessoas que vivem em situação de pobreza extrema na África Subsariana são da RD Congo. Além disso, em 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) descreveu o Congo como a «capital mundial da violência sexual».
Por entender que a situação no país não tem a atenção mediática necessária, a seleção congolesa viu no CAN uma oportunidade de chamar a atenção do mundo para a crise que o país atravessa.
A que se deve o conflito na RD Congo?
A RD Congo é extremamente rica em recursos minerais, mais concretamente, em cobalto (70% da produção mundial) e coltan (60%), dois materiais essenciais para a produção e alimentação de dispositivos eletrónicos. Além disso, o país é o quarto maior produtor de cobre do mundo, e possui, ainda, reservas de ouro, lítio, tungsténio e manganês.
Posto isto, existe um conflito armado pelo controlo das regiões do leste do país (Kivu do Norte, Kivu do Sul, Kasai e Katanga), nas quais estão identificados mais de 120 grupos armados, com especial destaque para o M23, que a ONU diz ser apoiado pelo Ruanda.
A situação de pobreza extrema beneficiam as potências que exploram a riqueza mineral da RD Congo, já que aproveitam a mão de obra quase escrava.
A notável campanha da RD Congo no CAN
Depois de ter perdido a vaga no CAN 2021, realizado nos Camarões, a seleção da RD Congo conseguiu redimir-se junto dos seus adeptos, ao qualificar-se para a edição da Costa do Marfim.
Os Leopardos terminaram em 1.º lugar na qualificação, obtendo uns notáveis 12 pontos, num grupo composto ainda pela Mauritânia (qualificada no 2.º lugar), Gabão e Sudão.
Em busca de um terceiro título continental, a convocatória do francês Sébastien Desabre incluiu Simon Banza, avançado do SC Braga, e também Chancel Mbemba, antigo central do FC Porto, agora no Marselha.
[CAN 2023 : 𝙇𝙞𝙨𝙩𝙚 𝙙𝙚𝙨 𝙇𝙚́𝙤𝙥𝙖𝙧𝙙𝙨🐆]
— Fecofa RDC_Officiel (@FecofaRdc) December 27, 2023
📸 Voici les 24 léopards sélectionnés qui prendront part à la phase finale de la coupe d’Afrique des nations Côte d’Ivoire 2023. #TotalEnergiesAFCON2023 #AllezylesLéopards #BendeleEkweyaTe pic.twitter.com/9hSTm95rwV
Os congoleses terminaram a fase de grupos no segundo lugar, com apenas 3 pontos, após terem empatado com Zâmbia (1-1), Marrocos (1-1) e Tanzânia (0-0).
A fase de grupos esteve longe de encher o olho, contudo, mas a equipa ganhou novo fôlego com o apuramento. O adversário dos oitavos de final foi, nada mais nada menos, que o Egito, orientado por Rui Vitória, finalista vencido da edição de 2021. Após o empate a uma bola, a RD Congo derrubou o recordista de títulos no desempate por penáltis.
O adversário dos quartos de final foi Guiné-Conacri. Apesar de terem começado a perder logo aos 20 minutos, os Leopardos mostraram os dentes e acabaram por operar a reviravolta e vencer por 3-1, com direito a golo do capitão Chancel Mbemba.
O sonho congolês foi desfeito nas meias-finais, pela anfitriã do torneio, a Costa do Marfim. O golo solitário de Sébastien Haller, aos 65 minutos, foi a machadada final nas aspirações congolesas de vencer a competição.
No jogo de atribuição do último lugar do pódio, a seleção congolesa acabou derrotada nos penáltis pela África do Sul, mas a campanha deixou o país orgulhoso, e serviu o propósito de deixar um alerta social.
🚨 𝘙𝘦𝘵𝘰𝘶𝘳 𝘪𝘮𝘮𝘪𝘯𝘦𝘯𝘵 𝘥𝘦 𝘯𝘰𝘴 𝘓𝘦́𝘰𝘱𝘢𝘳𝘥𝘴 𝘢̀ 𝘒𝘪𝘯𝘴𝘩𝘢𝘴𝘢 !
— Fecofa RDC_Officiel (@FecofaRdc) February 12, 2024
Rendez-vous ce lundi 12 février à 13h00 pour les accueillir de l'aéroport de N'djili au Stade des Martyrs. 🇨🇩⚽#AllezYLesLeopards #FecofaRdc #BendeleEkweyaTe #TotalEnergiesAFCON2023 pic.twitter.com/ttOW0WpUuB
Visibilidade para a crise na RD Congo
Gestos como o do hino, bem como a utilização de fitas negras no braço em sinal de luto, conseguiram chamar a atenção de quem assistia ao CAN.
Ainda antes do início da prova a seleção congolesa uniu-se ao Fundo Nacional de Reparação para Vítimas de Violência Sexual (Fonarev).
Através das redes sociais, a organização publica, frequentemente, fotografias e vídeos em que a comitiva congolesa exibe camisolas da Fonarev com a mensagem «Nunca mais sozinhos», como forma de apoio e solidariedade para com as vítimas de violência sexual nos conflitos da RD Congo.
Les LÉOPARDS représentent fièrement notre nation sur le terrain et apportent leur soutien aux victimes et aux survivants des atrocités commises en RDC à travers la campagne PLUS JAMAIS SEULS !#Fonarev #PlusJamaisSeuls #RDC pic.twitter.com/jnV2YEqGDd
— Fonarev RDC (@FonarevRDC) January 24, 2024
Além disso, os Leopardos contaram com a presença de Lucien Lundula Lolatui, diretor geral da Fonarev, nos seus treinos.
#RecapVideo de la rencontre entre les joueurs de l'équipe nationale et le directeur général du FONAREV @Lundula, venu afin de les sensibiliser sur la campagne « PLUS JAMAIS SEULS » : campagne de soutien en faveur des victimes et des survivants de violences sexuelles liées aux… pic.twitter.com/ibuvFFAmUg
— Fonarev RDC (@FonarevRDC) January 9, 2024
Até mesmo em imagens promocionais dos jogos da RD Congo existiram referências aos massacres no país. Os jogadores congoleses apareciam nessas imagens com a mão estendida, em alusão ao logotipo da Fonarev, que se tornou um dos símbolo dos Leopardos para a campanha de apoio contra a violência sexual.
𝑷𝑳𝑼𝑺 𝑱𝑨𝑴𝑨𝑰𝑺 𝑺𝑬𝑼𝑳𝑺 !
— Fonarev RDC (@FonarevRDC) January 17, 2024
Avec la main tendue, plus qu’une compétition, nos léopards jouent pour soutenir les victimes des atrocités commises depuis plus de 30 ans en RDC.
Toute la nation derrière les léopards ce soir ! #PlusJamaisSeuls #Fonarev #RDC #CAN2023 pic.twitter.com/aGfRzepPy9
Nas suas plataformas oficiais, a Federação Congolesa de Futebol também partilhou um discurso do capitão Chancel Mbemba a mostrar solidariedade para com a população do país.
#PlusJamaisSeuls#AllezLesLeopards https://t.co/X0I9ByJ0AN
— Fecofa RDC_Officiel (@FecofaRdc) February 5, 2024
Os jogadores tambem usam as suas redes sociais para denunciar os massacres na RD Congo. A título de exemplo, Simon Banza, Chancel Mbemba, Cédric Bakambu e Joris Kayembe, entre muitos outros (até mesmo jogadores que não foram convocados), já alertaram publicamente para a situação vivida pelo povo congolês.
— Simon Banza (@simbnz) February 4, 2024
Une très grosse pensée pour toutes les victimes des atrocités de Goma et à leurs familles. Je prie de tout mon cœur que mon pays retrouve sa paix. 🇨🇩❤️ pic.twitter.com/zLpAjaTjXE
— Chancel Mbemba (@mbemba22) February 5, 2024
🇨🇩 Tout le monde voit les massacres à l'Est du Congo. Mais tout le monde se tait.
— Cédric Bakambu (@Bakambu17) February 5, 2024
Mettez la même énergie que vous mettez pour parler de la CAN pour mettre en avant ce qu'il se passe chez nous, il n'y a pas de petits gestes. pic.twitter.com/PUZCavuckC
Trop c’est trop.
— Joris Kayembe (@JorisKayembe) February 4, 2024
Nous n’oublions rien ni personne, nous sommes vraiment avec vous 💔🇨🇩#PRAYFORCONGO #CONGOGENOCIDE #CONGOISBLEEDING pic.twitter.com/2IXSKl10Xv
«Usem a mesma energia que usam para falar do CAN, para destacar o que está a acontecer connosco, não existem gestos pequenos», referiu Bajambu durante o torneio.