Quando os guias emprestam os olhos a quem não vê
Bárbara Pereira perdeu a visão em dois momentos distintos: em 2004 perdeu o olho esquerdo e em 2017 o direito, ambos por descolamento da retina, e desde então «reaprendeu a viver às escuras». Mas a perda da visão não a paralisou. Pelo contrário, despertou uma vontade de voltar a fazer desporto, nomeadamente, corrida.
Reaprendi a viver às escuras e percebi que para mim era importante voltar a praticar desporto
No Porto, cidade onde vive, procurou respostas ao problema: como é que podia voltar a fazer desporto, mas agora cega. Encontrou apenas silêncio. Então decidiu criar as próprias respostas. Foi assim que, em 2019, nasceu o Projeto Sexto Sentido, inspirado numa iniciativa semelhante brasileira e trazida para Portugal por um guia, Alexandre, que Bárbara Pereira conheceu pouco depois de ter ficado cega. Percebeu de imediato que o empreendimento de que é fundadora dava resposta ao seu problema, e ao de tantas outras pessoas com problemas de visão - correr de forma segura.
O projeto consiste em permitir que pessoas invisuais tenham a oportunidade de continuar a prática de exercício físico, acompanhados por um guia voluntário. Começou na cidade do Porto, com apenas dez pessoas, mas depressa ganhou uma dimensão nacional.
Em 2022, a entrada no Programa de Responsabilidade Social dos Heróis Betano deu exposição e recursos ao projeto. Hoje, o Sexto Sentido conta com mais de 400 participantes, entre atletas com deficiência visual e guias, distribuídos por vários núcleos de norte a sul do país: Porto, Lisboa, Coimbra, Braga, Vila Real, Viseu e Aveiro. Já chegou à Madeira e brevemente vai alargar-se também ao Algarve.
Desporto: um veículo de inclusão
Para Bárbara, a corrida nunca foi apenas exercício físico: «quando estamos a correr, somos iguais a qualquer outra pessoa. A minha cegueira é apenas só uma das minhas características», afirma. Para a coordenadora do Sexto Sentido, o desporto é um «um veículo de inclusão», que destrói preconceitos: «As pessoas deixam de ver só uma pessoa cega a correr e passam a ver um atleta, como outro qualquer, a tentar desafiar-se e atingir os objetivos. O desporto muda mentalidades.»
Ainda assim, acredita que há um longo caminho a percorrer na inclusão: «Cada vez mais, vamos tendo mais respostas, mas ainda é preciso trabalhar muito desde a base, como nas escolas ou nas faculdades, para que os futuros profissionais percebam que o desporto é para todos», garantiu. Mas a missão do Sexto Sentido vai além de caminhadas ou corridas, e, por isso atua também na educação, no emprego e na sensibilização: «A principal barreira que encontramos é atitudinal. E essa só se resolve com a informação desde a base.»
Maior desafio de Bárbara: a forma como a sociedade a vê
Maior desafio do que correr sem ver, é correr contra os preconceitos: «O pior não é a cegueira, é como a sociedade me vê. Muitas vezes deixamos de ter acesso à mesma informação, ao mesmo olhar. É um abismo da realidade», reflete Bárbara Pereira.
Pior do que a cegueira, é como a sociedade me vê
Ainda assim, mantém a esperança e a ambição da mudança: «Cada vez mais vozes se levantam. O caminho é longo, mas faz-se. Não interessa aquilo que nos vai acontecer na vida, seja o que for, o que interessa é como é vamos lidar com essa circunstância. O diálogo é tudo: perguntar antes de agir».
«Projeto Sexto Sentido é um 'win-win'»
O Projeto Sexto Sentido é um encontro dos dois mundos: o de quem não vê e o de quem se dispõe a emprestar os olhos «É um win-win. Uma troca de experiências, onde todos ganham. O guia empresta-nos os olhos, mas também ganha a nossa experiência de vida», afirma Bárbara Pereira.
O processo de seleção dos atletas guias é aberto a todos. Passa por uma conversa inicial, que leva ao esclarecimento sobre a deficiência visual, depois um treino aberto e acaba com uma experiência de correr ou caminhar de olhos vendados. «É fundamental para perceberem a confiança necessária entre guia e atleta», explica Bárbara.
«Pé alto, pé firme, ou pé baixo», para quem vê, são palavras banais. Mas para quem corre sem ver o mundo, são o fio condutor que mantém o corpo seguro e a autonomia viva. O método de corrida utiliza uma guia em forma de um ‘oito’ deitado, sem contacto físico direto, o que dá «uma sensação de liberdade» ao atleta. Nas caminhadas, basta a mão no cotovelo do guia e, mais importante, uma descrição constante do que está ao redor. «Descrever é incluir», afirma Bárbara.
Ganhar uma vida nova
Ricardo Ribeiro, marido e guia atleta de Bárbara Pereira, viveu toda a transformação de perto. seu maior desafio não foi a companheira ter perdido a visão, mas sim reinventarem-se: «Antes era simples. Depois ficámos sem respostas e houve até um luto. Quando começamos a correr guiados, foi como ganhar uma vida nova», recorda. Mas o projeto não trouxe apenas a prática de exercício físico, trouxe-lhes também uma rede sólida: «Felizmente, a Bárbara conseguiu-se rodear de pessoas, que conseguem dar apoio.»
O maior desafio não foi a companheira ter perdido a visão, mas sim reinventarem-se: «Antes era simples. Depois ficámos sem respostas e houve até um luto. Quando começamos a correr guiados, foi como ganhar uma vida nova», recorda. Mas o projeto não trouxe apenas a prática de exercício físico, trouxe-lhes também uma rede sólida: «Felizmente. a Bárbara conseguiu-se rodear de pessoas, que conseguem dar apoio.».
«Correr vendada é fundamental para perceber a vulnerabilidade dos outros»
A chegada do projeto à Madeira contou com o envolvimento da ACAPO - Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal. Ana Andrade é coordenadora do núcleo da Madeira da ACAPO, desde 2022, descreve a importância da chegada do projeto à ilha: «Há muitas pessoas isoladas socialmente. O Sexto Sentido promove a possibilidade de fazer exercício físico, sair de casa, mas também conviver».
Ana nasceu cega, com glaucoma congénito, e desde sempre foi essa a sua realidade. Por isso, sabe bem as dificuldades que existe no quotidiano de quem vive sem visão. «Caminhar nas nossas cidades não é fácil. Há muitos obstáculos, mas também preconceitos», aponta. Por isso, vê no Sexto Sentido um projeto essencial para «quebrar essa barreira»: «Quanto mais pessoas trabalharem, mais conseguimos desmistificar e mostrar que é possível caminhar ou correr em segurança.»
Ao lado de Ana está a irmã, Cláudia Andrade, atleta guia voluntária. «Eu sou guia desde que nasci e gosto de acompanhar os todos os projetos em que a minha irmã se propõe», afirma com ternura. A experiência de correr vendada, no exercício reverso, garante ser fundamental para perceber o outro lado da moeda: «É estranho, parece que estamos dentro de uma caixa. Mas é fundamental para entendermos a vulnerabilidade do outro».
A descrição visual, defende, é uma responsabilidade de quem guia: «Há pessoas que precisam de mais detalhes, outras de menos. É preciso sensibilidade, porque a comunicação evita acidentes e dá tranquilidade».
«Olhando para trás, diria para acreditar que não estou sozinha»
Projetando o futuro, Bárbara Pereira quer uma coisa acima de tudo: a continuidade do projeto. «O objetivo é manter todos os núcleos, que existem até ao dia de hoje, vivos». Assim como, manter toda a estrutura - coordenadores e embaixadores - para que o projeto corra da melhor forma e se mantenha um trabalho de proximidade com os atletas, voluntários e guias.
O marido - e guia atleta - Ricardo Ribeiro recorda o percurso de Bárbara: «Se olharmos para trás, é incrível tudo o que a Bárbara conquistou através do desporto. Nunca imaginei estar a ter esta conversa quando a Bárbara perdeu a visão».
Bárbara Pereira, além de fundadora e coordenadora do projeto Sexto Sentido, é um exemplo de superação. Quando questionada sobre o conselho que daria a si própria quando perdeu a visão há oito anos, não hesita: «Olhando para trás, diria para acreditar que não estou sozinha.»