Quando for grande quero ser jogador de futebol
Quando era miúda queria ser professora de ballet e quase todos os meus amigos rapazes queriam ser astronautas. Passaram mais de trinta anos dessa época, as únicas aulas que dou são em pós-graduações sobre envelhecimento e nenhum dos meus amigos foi ao espaço — o que está mais perto disso é mecânico de aviões.
Hoje, num mundo muito diferente daquele onde comíamos bollycaos por cem escudos no intervalo da manhã, os miúdos continuam a sonhar. E se a maioria das meninas, de acordo com os dados da OCDE de 2022, sonha com profissões como médica ou professora, muitos meninos sonham ser jogadores de futebol. Eu, inclusivamente, tenho um desses cá em casa. E se é verdade que não quero ser uma daquelas mães que matam os sonhos das crianças, também é verdade que a probabilidade de o meu filho ser jogador de futebol profissional é quase tão grande como a de ganhar o Euromilhões. Porque apesar de ele se ajeitar com a bola, está longe de ser um fora de série ou um poço de talento.
E perguntarão os leitores desta crónica porque é que estou a escrever sobre isto, verdade? A resposta, porém, é simples: o regresso de Gonçalo Batalha a Alvalade, enquanto jogador do Marinhense, fez-me pensar muito sobre esta coisa de sonhar ser futebolista. Porque se é verdade que são os sonhos que comandam a vida, também é verdade que a realidade, de uma forma ou de outra, acaba sempre por se impor. E quando a realidade ataca não há onirismo que lhe resista.
Gonçalo Batalha, como A BOLA noticiou, foi homenageado por uma das claques do Sporting com faixas que diziam «leão da formação»/ «o eterno capitão»/ «Gonçalo Batalha». E se esta homenagem não deixa de ser um extraordinário reconhecimento e um óptimo trabalho de uma claque — notemos que as claques raramente são faladas pela parte boa do seu trabalho, a verdade é que também é uma recordação de quão duro e complexo é o mundo do futebol profissional.
Gonçalo Batalha jogou no Sporting entre os sete e os vinte anos e viveu parte da sua adolescência na academia de Alcochete. Foi capitão leonino em todos os escalões de formação e teve vinte e nove internacionalizações jovens por Portugal, mas, apesar disso, nunca chegou à equipa principal do clube. Joga agora no Marinhense, clube da sua cidade natal. E é a prova viva de que, no mundo do futebol, mesmo o talento não é garantia de sucesso.
Desde que ouço o meu filho dizer que quer ser jogador de futebol que o aviso que é importante ter um plano B. E mesmo sem lhe magoar o ego vou introduzindo alguma realidade nas suas aspirações e explicando que não há um Cristiano Ronaldo em cada esquina. «Tu jogas bem na tua escola, mas a tua escola está numa cidade, a tua cidade está num distrito, o teu distrito num país e o teu país num continente. E em todos esses lugares há meninos bons, muitos deles melhores do que tu.» Destruição de sonhos? Prefiro chamar-lhe lição de humildade.
E Gonçalo Batalha está longe de ser caso único. Embora com contornos diferentes, porque Gonçalo foi sempre um exemplo de postura, todos conhecemos a história de Fábio Paim, que, aos quinze anos, já tinha o estatuto de craque — e, desgraçadamente, um comportamento de vedeta rebelde que lhe destruiu a carreira e que o deixou eternamente no separador do aquilo que podia ter sido.
E há dezenas de outros exemplos de jogadores que, apesar do talento e da oportunidade, nunca se conseguiram afirmar. Assim de repente, vem-me à cabeça Freddy Adu que ganhou cedo o rótulo de novo Pelé e que chegou ao Benfica envolto em expectativas que rapidamente foram furadas. Hoje, Freddy é uma história para contar aos miúdos quando lhes queremos explicar que só o talento não basta.
Como referi, estes casos são muito diferentes do caso de Batalha, mas não devem deixar de nos fazer refletir, especialmente quando o futebol é o sonho de tantos e tantos miúdos — ainda que, alguns deles, suspeito que não o sonhem pelo jogo em si, mas pela ideia de riqueza e vida glamorosa que vem associada à profissão.
Os dados são o que são e, neste caso, não enganam: menos de 1% dos jovens que jogam em academias de futebol atingem o topo. E é por isso que o papel de gestão de expectativas por parte dos pais é tão importante: alimentar a crença de que miúdos de talento mediano serão os novos Ronaldos vai acabar por desaguar em frustração e sensação de fracasso. Nos miúdos e nos pais.
E sim, muitos pais parecem viver noutro planeta no que toca às reais capacidades dos filhos — quem nunca ficou com vergonha alheia a ver pais incentivarem e elogiarem os filhos em concursos de caça-talentos quando os miúdos são uma verdadeira tragédia musical? Isto também acontece no futebol. Não que os miúdos sejam maus jogadores, mas são só mais um no meio de muitos. Miúdos com alguma habilidade, com gosto pelo jogo, mas sem nada que os destaque no meio da multidão.
É papel dos pais incentivar o futebol como um prazer, uma forma de fazer atividade física e de trabalhar em equipa. E isso implica desincentivar que a vida dos filhos gravite exclusivamente à volta da modalidade e que encarem o futebol como a única via possível de sucesso.
O caso de Gonçalo Batalha é paradigmático: estava lá tudo e mesmo assim não aconteceu. E se foi assim com ele, imaginem com os nossos filhos*.
*E quem diz filhos, miúdos e jogadores, diz filhas, miúdas e jogadoras.
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