Diogo Jota homenageado pelos adeptos do Liverpool
Diogo Jota homenageado pelos adeptos do Liverpool (Foto Imago)

Quando a dor abala o balneário

Desportiva_MENTE é o espaço quinzenal de opinião de Liliana Pitacho, psicóloga e docente no Instituto Politécnico de Setúbal

No desporto, como na vida, há partidas anunciadas e outras que roubam o chão. Quando um colega sai por transferência, há despedidas, mensagens, algum lamento e, por vezes até algum descontentamento ou saudade, mas a vida segue e os laços não se quebram. Contudo, quando um colega morre, não há conferência de imprensa que prepare a equipa para o silêncio que se instala, o descontentamento não tem um rosto e os laços quebram numa imagem sem futuro. Fica um lugar vazio no balneário, no campo e no interior de cada um.

Este artigo não pretende continuar a explorar a dor, nem fazer referências a situações especificas. Se recuarmos ao longo dos anos podemos encontrar diversas perdas no desporto, nas mais diversas modalidades, com mais ou menos mediatismo, com mais ou menos impacto nas comunidades, mas com o mesmo impacto dentro da equipa ou equipas desportivas.  Um impacto que não atinge o seu auge no momento da perda, mas sim nos tempos seguintes, no espaço do balneário, nas refeições, nas ações mais rotineiras onde ausência começa a pesar.

Os laços que se criam numa equipa não são comparáveis aos de qualquer outro ambiente de trabalho convencional, por muitos que às vezes se faça paralelismos. Ali, vive-se junto, vive-se as viagens longas, os estágios intensos, a distância da família, vive-se as vitórias, as derrotas, as lesões, as incertezas, os medos. Cada elemento da equipa é parte da identidade do grupo, do nós que está sempre junto nos momentos bons ou maus, um nós que pode ter as suas divergências e os seus conflitos, mas que ainda assim opera como um só em momentos críticos.  

A Teoria da Identidade Social explica este fenómeno. Não somos só indivíduos, somos aquilo que representamos coletivamente e numa equipa desportiva este sentido de identidade coletiva está, por norma, deverás exacerbado pela natureza e intimidade das suas relações. Numa equipa desportiva existe como uma extensão entre o Eu e o Nós, como uma simbiose quase perfeita entre a identidade pessoal e a identidade coletiva. Como tal, quando um membro desaparece, esse nós fica danificado. E o impacto vai muito além da ausência em campo porque representa uma perda, um vazio, para a própria identidade.

Assim como a identidade, também a dor é uma dor partilhada, mas esta partilha não atenua a sua intensidade, antes pelo contrário. De acordo com a teoria do trauma coletivo este não se esgota na soma das dores pessoais, representa uma rutura na narrativa partilhada de quem somos enquanto grupo. E no desporto, essa narrativa é vivida todos os dias através dos rituais, dos códigos que o grupo conhece, naquela cumplicidade em que basta um olhar para comunicar. Quando uma equipa perde um dos seus, perde um elo da sua história, uma parte da identidade emocional construída em conjunto. A ausência física transforma-se numa presença simbólica, por vezes difícil de nomear, mas impossível de ignorar.

Este é um momento crítico para as equipas, enquanto coletivo, mas também do ponto de vista da saúde mental e bem-estar de cada um dos seus elementos. O trauma coletivo exige um trabalho simbólico de reconstrução através do qual o grupo precisa de dar sentido ao que aconteceu, reconfigurar o seu nós e criar formas de coesão. No desporto, isso pode passar por homenagens, gestos de tributo, palavras partilhadas, mas também por momentos de escuta e cuidado psicológico. Sem este trabalho, o grupo pode continuar a competir, mas emocionalmente fraturado com possíveis consequências não só para o desempenho do grupo, mas também para a saúde mental de todos.

É aqui que falamos do processo de luto, no início a perda é apenas consciente, mas não sentida. O cérebro percebe a ausência física, mas em termos emocionais demora a aceitar a ausência simbólica. É com o tempo, nas rotinas mais básicas que o vazio se enche de dor e é importante auxiliar as equipas (cada um dos seus elementos) a realizar este processo de luto de forma completa e saudável. Isso não significa fugir ou evitar a dor, mas sim respeitar cada uma das suas etapas e perceber que tudo tem o seu tempo. Mas o tempo da competição não é o tempo do luto e, por isso deve ser reforçado o apoio psicológico dado aos atletas neste momento.