Os caminhos do apito português
Durante muitos anos, a arbitragem portuguesa de futebol viveu numa espécie de redoma, protegendo-se de efeitos exteriores, mas, simultaneamente, dando azo a interpretações díspares, mal-entendidos, suspeições e, sejamos claros, algumas injustiças relativamente ao imenso esforço de alguns dos seus mais significativos representantes aquém e além-fronteiras.
Será sempre, num país de matriz latina, impetuoso, facilmente irritável, apaixonado mais pelas cores clubísticas do que, muitas vezes, pela verdade desportiva pura e dura, uma área particularmente sensível e atreita a todos os comentários, todas as críticas, todas as conclusões precipitadas.
Porque muitos dos que criticam não sabem sequer as medidas regulamentares de um retângulo de jogo ou quantas (e quais…) são as Leis que regem o desporto-rei. Amamo-lo, mas não queremos saber de muitos pormenores. Crescemos no âmbito do clube, assumimos uma paixão mas nem sequer nos importa saber se ganhamos dentro das regras ou a trapaceá-las. Na realidade, por muito que custe, é isto mesmo.
Uma gritante falta a nosso favor não é, necessariamente, vista e sentida do mesmo modo (equilibrado e justo), se as cores forem as do adversário. Porque, em Portugal, raramente se joga com, e quase sempre se joga contra, minimizando e desprezando o oponente. Muitas vezes esquecemos que, sem alguém de qualidade do outro lado, as vitórias não terão o mesmo sabor, nem sequer o mesmo valor…
Transversalmente a tudo isto, está a arbitragem. Que precisa de motivação, de renovação, de qualificação, de expressão. Não extramuros, que nesse específico capitulo Portugal, um pequeno país de 90 mil quilómetros quadrados de superfície e de dez milhões de habitantes, tem dado à estampa grandes valores para exportação. Mas dentro de fronteiras é essencial um planeamento a médio e longo prazo, trabalhando a arbitragem como elemento essencial do jogo, recrutando e estimulando novos valores e garantindo-lhes um quadro de apoio sistémico ao longo da evolução na carreira.
Esse é um trabalho na sombra, que Duarte Gomes decerto entabulará, enquanto novo Diretor Técnico Nacional para o setor. É um desafio aliciante, sobretudo porque se desenrolará longe dos holofotes tradicionais, condição, de resto, essencial para o sucesso da empreitada.
Por outro lado, importa que a arbitragem comunique mais e melhor. Os parâmetros, neste particular, têm sido muito contidos no espaço e no tempo, e têm, justamente por isso, dado azo a interpretações múltiplas e dúbias, cuja raíz tem de ser rapidamente cortada.
Não sou a favor de comentadores de arbitragem, no modo e no plano em que são utilizados e promovidos em Portugal. Ter ex-árbitros (alguns, convenhamos, de caráter duvidoso), a falar de antigos companheiros de função, muitas vezes de maneira jocosa e incorreta, do ponto de vista ético, parece-me um tiro no pé.
A dignificação da função e a sua aproximação à opinião pública pode (deve) ser feita de um modo pedagógico, que, na realidade, não está ao alcance de todos. Com espaços públicos certificados, abalizados. Não faz sentido o principal operador de televisão para o futebol em Portugal matar o seu produto, logo após o final de cada jogo, com uma avaliação sumária do trabalho e das decisões das equipas de arbitragem. Nesse particular, a Sport TV (e todos os seus recorrentes especialistas) têm prestado um péssimo serviço à causa, pelo imediatismo e pela natural repercussão que esse trabalho tem no setor e, sobretudo, no público consumidor, sempre ávido de sangue e muito pouco disponível para explicações coerentes e atempadas.
Por isso não me espanta, seguindo a qualidade e os critérios da arbitragem a nível internacional, que João Pinheiro tenha, no estrangeiro, o sucesso e o aproveitamento que são questionados em Portugal. Projetado para o muito restrito grupo de Elite da UEFA no início do ano, o juiz de Braga esteve já num Mundial de sub 17 (na Indonésia) e vai marcar presença, em setembro e outubro, no Mundial de sub 20, no Chile.
Só Carlos Valente e Soares Dias o conseguiram até aqui. Valente esteve, depois, num Mundial AA, mas faltou a Artur esse momento, embora tenha terminado a carreira internacional com uma excecional prestação na fase final do Euro 2024, na Alemanha. Pedro Proença, por exemplo, teve como momentos mais altos as finais da UEFA Champions League e do Euro na mesma temporada (2012), embora o jogo derradeiro do Europeu, na Ucrânia, tivesse sido atingido porque a Itália lá marcou presença. De outro modo, teria sido Nicola Rizzoli a apitar o jogo do Estádio Olímpico de Kiev.
Por isso, ainda merece mais destaque a ascensão comedida de João Pinheiro, como pináculo da atual arbitragem portuguesa de primeiro plano. Com Catarina Campos, emergem dois valores que serão exemplos e benchmark, com Catarina decerto a estar presente no Mundial feminino do Brasil (em 2027), e Pinheiro em 2026 ou (é mais adquirido), em 2030. São estes nomes e os seus percursos que legitimam a esperança num setor da arbitragem cada vez mais sólido, preparado, imune e desafiado a quebrar barreiras.
Os caminhos do apito são, afinal, tão simples e reduzidos a quatro verbos: despistar, formar, comunicar e projetar.