João Moreira conta choque cultural que viveu na Nova Zelândia... logo no primeiro dia. Das crianças aos adultos, poucos usam calçado

«No meu primeiro jogo vencemos 10-0. Duas semanas depois, já era campeão»

Destino Aventura é a rubrica em que A BOLA dá a conhecer os jogadores espalhados pelos cantos mais remotos do mundo. João Moreira faz uma retrospetiva de oito anos na Nova Zelândia, marcados pelo crescimento do futebol e um ritmo de vida «mais tranquilo»

João Moreira despontou com apenas 19 anos no Estrela da Amadora em 2005, representou Portugal no Campeonato de Europa sub-21 em 2017 e até treinou com David Villa e David Silva no Valência, mas o destino levou-o para paragens mais exóticas na última década e meia.

Nos últimos 12 anos, o avançado fez o gosto ao pé no Brunei, Malta, África do Sul e Nova Zelândia, onde está baseado desde 2020 e representa atualmente os Northern Rovers, na segunda divisão. Aos 39 anos, em entrevista a A BOLA, João Moreira reflete sobre o nível do futebol neozelandês, analisou a evolução do desporto-rei na Oceânia e antecipa o final da carreira.

Quando começou como sénior no Estrela da Amadora aos 19 anos em 2005, esperava ter este tipo de carreira?

Nunca pensei em ir para quase todos os continentes do planeta. Pensei que ficaria no Estrela uns quantos anos, e depois voava para patamares mais altos, em Portugal ou fora.

Que balanço é que faz de nove temporadas na Nova Zelândia?

A minha vinda para a Nova Zelândia refletiu o desejo de mudar de ares e procurar uma aventura fora do contexto. Vim para o maior clube do país [Auckland City em 2014], tive a possibilidade de jogar o Mundial de Clubes e sobretudo de ganhar títulos. Continuo a jogar numa divisão abaixo, mais amadora, porque já não tenho o desejo de treinar cinco dias e estar focado 100%. Treinamos duas, três vezes e se não puderes ir não há problema, o clube é ao lado de casa. Tenho um bocadinho de paz, tendo em conta que já sei que o final está aqui.

João Moreira representou o Auckland City entre 2014 e 2017 - Foto: D.R.

— Pensa em acabar a carreira já no final desta época?

Estou a pensar pendurar as botas [risos]. O corpo ainda permite, sinto-me um privilegiado, mas acho que já é suficiente e que está na altura de ir em busca de outras aventuras. Quando vens para Nova Zelândia para qualquer tipo de desporto, eles dão dois tipos de contrato: um de futebol e um de  community coaching. Estou ligado à formação do clube, dou treinos privados, vou a escolas, sou instrutor em campos de férias para os miúdos, faz parte do contrato.

Como é que é a relação dos neozelandeses com o futebol?

O futebol tem criado mais paixão, comparando com o momento quando cheguei, não havia muita atração. O futebol cresceu tanto que qualquer rapaz ou rapariga que vês na escola tem uma camisola de futebol. Os rapazes e as raparigas estão no mesmo escalão de idade até aos 15/16 anos.

O que é que viu no futebol da Nova Zelândia que seria impensável em Portugal?

No meu primeiro jogo vencemos 10-0. Pensei ‘o que é isto?’, Duas semanas após ter chegado já era campeão. Parecia que estava a jogar um torneio amador, o nível era completamente baixo. Fui apanhado um pouco de surpresa.

João Moreira durante o Mundial de Clubes 2015 - Foto: IMAGO

Quais são as principais diferenças que identifica entre a cultura neozelandesa e a portuguesa?

A Nova Zelândia é um país pequeno, mais pacífico, mais relaxado. Não há tanto alvoroço como em Portugal. Lisboa e Auckland são cidades totalmente diferentes. Aqui não há trânsito. É mais fácil para criar uma família porque tens mais tempo para desfrutar dela. No primeiro dia fui à cidade passear à parte mais importante dentro da cidade e vi um senhor, de fato, gravata e sem sapatos, descalço. Os miúdos não levam sapatos para as escolas, vão descalços. Alguns colegas vinham para os treinos descalços. Às vezes, vou passear e não levo sapatos.

Ao serviço do Auckland City contra Vanuatu e no Taiti. Quais são as principais memórias que tem de jogar nestes países sem tradição na elite do futebol?

As viagens são bonitas, parece que vamos de férias. É difícil jogar nas ilhas porque que as temperaturas são fora do normal. A maioria dos jogos são às 14h e estão perto de 36 graus. A humidade é tão alta que parece que estás a asfixiar. Os jogadores das ilhas são muito bons tecnicamente, fortes fisicamente, a nossa única solução era a tática.

Como era o ambiente nas ilhas mais pequenas?

— Eram 3/4 mil espectadores, havia pessoas em cima das árvores, dos telhados. Uma loucura. Qualquer coisa que um jogador local fizesse, um drible, era um sonoro incrível. Quando vais jogar à ilha é uma boa sensação, faz-te lembrar quando estás na Europa.

João Moreira já representou seis equipas na Nova Zelândia - Foto: IMAGO

Nos jogos em casa, o apoio era semelhante?

Tínhamos 100 a 150 pessoas e 30 ou 40 eram familiares. Agora está a crescer, mas quando eu cheguei era tudo amador.

Que condições encontrou em termos de infraestruturas?

A Nova Zelândia tem campos em abundância, quase todos em parques públicos. Os estádios são para eventos maiores. Aqui o rei é o râguebi e o príncipe é o críquete, são os que têm direito aos estádios. O futebol tem crescido pouco a pouco, mas até agora jogamos em campos. É caricato, às vezes estás a aquecer e estão cães a correr ao teu lado.

É uma questão cultural?

Sem dúvida, nunca tiveram afinidade com o futebol. Não há palavras para descrever o quão grande é o râguebi neozelandês e mesmo o cricket.

Pensa em voltar à Europa no final da carreira?

A minha intenção é viver em Espanha para estar mais perto do mais velho e também recuperar um bocadinho destes anos que eu perdi. E levo a família que nunca saiu da Nova Zelândia para conhecer um pouco da nossa cultura e para estar mais perto da minha família.

O seu filho mais velho, de 16 anos, joga no Villarreal, a poucos quilómetros de Valência, onde há 20 anos treinou com David Villa e David Silva no Valência...

Ele pergunta a cada dia ‘O que é que fazias quando tinhas a minha idade?’, ‘Como é que era tal pessoa?’. Eu conto, mas digo sempre ‘tu tens de criar o teu percurso’. Ele manda-me vídeos todos os dias para eu analisar e dar feedback. Está muito focado, é bom. Até mais focado do que eu na altura. Só estou aqui para encaminhar, não para dizer o que tem de fazer. É preciso muita sorte, mas sobretudo trabalho.