João Moutinho: a outra face da longevidade e da excelência
Aos 39 anos, o médio algarvio mantém-se relevante na elite do futebol português, vestindo a camisola do SC Braga com a mesma seriedade de sempre. Ian Cathro, antigo adjunto de Nuno Espírito Santo e atual treinador do Estoril, trabalhou com Moutinho no Wolves e descreve-o como um jogador diferente, sabe muito, ou sabe tudo, do que tem de fazer. Mantém o mesmo entusiasmo pelo jogo que teria com seis ou sete anos. Junta a inteligência à motivação de um miúdo.
Há, porém, uma outra característica que explica a longevidade de Moutinho: ele não sabe jogar mal. Joga simples. E jogar simples, como me disse Rio Ferdinand na elaboração de um dos meus livros, é das coisas mais difíceis no futebol. Nenhum passe de Moutinho é trapalhão, nenhuma bola sai dos pés dele sem sentido, não há erros nem gestos supérfluos. Os pés dele têm uma espécie de obsessão pela perfeição: tudo sai limpo, no tempo certo, com um propósito claro.
Cristiano Ronaldo impressiona pelo atleta que é e pela capacidade de reinvenção física. Moutinho surpreende pela constância, pela cabeça fria e pelo coração quente. Nunca foi o mais forte, o mais rápido nem o mais espetacular. Mas foi quase sempre o mais regular. É o típico jogador que faz jogar, que dá equilíbrio, que pensa antes dos outros e executa no momento exato. E isso, no futebol, é ouro.
Formado no Sporting CP, foi lançado às feras em 2005 e rapidamente se tornou capitão, ainda com 20 anos. Passou pelo FC Porto, onde conquistou três campeonatos consecutivos e a Liga Europa de 2011. Transferiu-se depois para o Mónaco, onde foi pedra fundamental na equipa que quebrou a hegemonia do PSG e chegou às meias-finais da Liga dos Campeões em 2017.
Na Premier League, foi símbolo do Wolverhampton durante cinco épocas. Terminou a ligação em 2023 e, na hora da despedida, o diretor desportivo dos Wolves, Matt Hobbs, não poupou nos elogios: O João vai deixar-nos como um dos melhores jogadores a vestir a nossa camisola. Foi parte integrante da equipa em todo o tempo que cá esteve e foi fundamental para o nosso sucesso nos últimos quatro, cinco anos. (…) Quando chegou, tínhamos um grande contingente de portugueses e ele era um herói para muitos, pelo que já tinha conquistado, tanto nos clubes como no futebol internacional. Tinha uma presença especial: as pessoas queriam seguir o seu exemplo.
E é precisamente esse legado de exemplo que distingue Moutinho. Nunca precisou de discursos inflamados, mas a sua conduta servia de lição diária: o primeiro a chegar, o último a sair, um profissional sem vícios, sem distrações, que punha o futebol e a equipa acima de tudo.
Na Seleção Nacional soma 146 internacionalizações, só superado por Cristiano Ronaldo. Esteve no Euro 2008, 2012, 2016 e 2020, nos Mundiais de 2014, 2018 e 2022, além da conquista da Liga das Nações em 2019. O episódio mais célebre da sua relação com Ronaldo aconteceu no Euro 2016, antes da histórica vitória em França. Anda bater que tu bates bem, gritou CR7 antes da decisão por penáltis. Ficou para a memória coletiva como um momento de liderança de Ronaldo, mas também como um reconhecimento do talento silencioso de Moutinho.
José Mourinho não tem dúvidas: É dos jogadores mais inteligentes que já vi. O João sabe sempre o que o jogo precisa. Leonardo Jardim, que o treinou no Mónaco, acrescenta: Era o nosso relógio. Quando ele estava em campo, a equipa funcionava. Para Pepe, colega de seleção e de FC Porto, Moutinho foi sempre um líder silencioso, mas fundamental. Com ele ao lado, qualquer jogador se sente mais confiante. Até Bruno Fernandes, hoje dono do meio-campo da Seleção e do Manchester United, reconhece a herança: O João foi um exemplo para todos nós. Se hoje sou capitão em Manchester, é porque vi como ele liderava: com exemplo, trabalho, calma e seriedade.
Talvez por nunca procurar protagonismo, Moutinho não tenha recebido a mesma atenção mediática que outros craques da sua geração. Mas isso nunca o incomodou. A sua força esteve sempre no coletivo, no detalhe, no gesto simples que faz a diferença: o passe que liberta um colega, o corte que evita um contra-ataque, a pausa que dá oxigénio à equipa.
Hoje, quando se discute o legado da geração de ouro que conquistou o Europeu de 2016 e a Liga das Nações de 2019, convém não esquecer João Moutinho: o médio que nunca levantou a voz, mas que sempre se fez ouvir em campo. O jogador que continua, aos 39 anos, a provar que a longevidade não se mede apenas em recordes, mas também em consistência, inteligência e amor pelo jogo.
A herança de João Moutinho vai, no entanto, muito além das quatro linhas. Em Lagoa, no coração do Algarve, existe uma escola que leva o seu nome e traduz em prática o que ele sempre foi enquanto jogador: rigor, humildade e paixão. A Escola de Futebol João Moutinho é também a história de uma família que fez do futebol a sua linguagem comum. A ideia nasceu do pai, Nélson Moutinho, inspirado pela ascensão do João e pelo prestígio que o médio foi conquistando ao longo de uma carreira irrepreensível. Já existia uma escola em Portimão, mas a vontade de criar algo mais próximo da terra e do coração levou a família a instalar-se em Estômbar, no Campo Municipal.
David Moutinho, meu colega de universidade e um dos irmãos do João, é responsável pelo projeto. Explicou-me que o objetivo da escola nunca foi apenas formar jogadores, mas sobretudo formar pessoas: Sabemos que o futebol é cada vez mais difícil. Em cada mil, dois mil, cinquenta mil, aparece um caso de sucesso. Por isso, o que queremos transmitir é educação, respeito, compromisso e, claro, o conhecimento técnico e tático que o jogo exige.
A filosofia é simples, mas poderosa: todos são bem-vindos. A Escola de Futebol João Moutinho não seleciona por talento, acolhe por vontade. Muitos jovens chegam ali depois de terem sido dispensados de outros clubes e é ali que reencontram a confiança e o prazer de jogar. Trabalhamos com todos da mesma forma. Acreditamos que todos podem crescer e evoluir disse-me o David.
O método de treino adapta-se ao perfil dos atletas e ao grupo. Não seguimos à risca modelos de outros clubes. O nosso jogo reflete quem temos à frente reforça David Moutinho. Essa abordagem flexível e humana tem dado frutos. Vários jovens passaram por ali e seguiram caminho no futebol nacional e internacional. Entre os exemplos, o de Alexandre Moutinho, outro irmão, que saiu diretamente da escola para o FC Porto, e hoje continua a carreira no Campeonato de Portugal.
Por trás de tudo está o exemplo de João Moutinho aos 39 anos, continua a ser um modelo raro de longevidade, profissionalismo e paixão pelo jogo. Durante muitos anos esteve entre os cinco melhores médios do mundo, sublinha David Moutinho, orgulhoso. O João é trabalho, é resiliência, é inteligência. Antes de a bola lhe chegar aos pés, já sabe o que vai fazer.
É essa leitura do jogo natural, quase instintiva que faz de Moutinho um caso especial. Um jogador que percebe o ritmo, o tempo e o espaço como poucos. Um criador mais do que um finalizador, sempre ao serviço da equipa. Podia marcar mais golos, mas prefere oferecer. Faz os outros jogar e isso define-o.
Tudo isto nasce de uma paixão de família. O pai foi jogador, os filhos cresceram entre campos e bolas. Desde pequeno, João jogava acima do seu escalão e mostrava uma maturidade fora do comum. Percebia o jogo de uma forma diferente. Já aí se notava que estava destinado a algo maior, recordou David.
Hoje, o nome Moutinho é sinónimo de ética, compromisso e amor pelo futebol. E a escola que leva o seu nome, em Lagoa, é mais do que um espaço de treino: é um laboratório de valores. A prova de que o sucesso se constrói com raízes, e de que, por trás de um grande jogador, há quase sempre uma grande família.
Cristiano Ronaldo é excecional. João Moutinho também. Só que, como sempre, Moutinho prefere demonstrá-lo em silêncio.
(Um obrigado especial ao David Moutinho pela ajuda na elaboração deste artigo)
«Liderar no Jogo» é a coluna de opinião em abola.pt de Tiago Guadalupe, autor dos livros «Liderator - a Excelência no Desporto», «Maniche 18», «SER Treinador, a conceção de Joel Rocha no futsal», «To be a Coach» e «Organizar para Ganhar» e ainda speaker.