Farioli feliz com o triunfo em Alvalade (Foto: Catarina Morais/Kapta+)
Farioli opera mudanças no onze (Foto: Catarina Morais/Kapta+)

Farioli e o déjà-vu que assombra o Dragão

Chegou ao FC Porto com a mesma energia contagiante com que entrou em Nice e, mais recentemente, em Amesterdão. O arranque é promissor, a equipa respira entusiasmo, o Dragão parece ter reencontrado vitalidade. Mas, por detrás do sorriso do técnico italiano, existe uma sombra que o próprio não esconde: o trauma de ter perdido um campeonato que parecia ganho, na Holanda, ao serviço do Ajax, na última temporada

No início de abril, a vantagem de nove pontos sobre o PSV parecia definitiva para conquistar a Eredivisie 2024-25. O telefone não parava de tocar, a carreira parecia encaminhada para voos maiores. Podia dar-se ao luxo de escolher entre a Premier League, a Serie A e até mesmo a Arábia Saudita. Um mês depois, tudo desmoronou. Oito bolas nos postes em dois jogos, golos sofridos no final, desgaste, sobranceria de um clube habituado a dominar. Uma mistura fatal. Farioli não esquece e reconhece que, nesse momento, a linha entre sucesso e fracasso mostrou-se mais fina do que nunca.

Essa experiência, amarga, mas formativa, poderá ser uma arma no presente. No FC Porto, o cenário tem semelhanças no ponto de partida: entusiasmo imediato, integração rápida, confiança no plano de jogo. Mas o italiano parece determinado a alterar o guião. Sublinha a importância de se adaptar à cultura do clube, que descreve como carnal, feita de sacrifício e um público em combustão, e acrescenta-lhe a sua marca, o seu ADN: organização, jogadas codificadas, detalhe tático. Um equilíbrio entre o fogo emocional e a estrutura racional.

Herdeiro de princípios de treinadores como Roberto De Zerbi, Farioli aposta numa ocupação racional dos espaços, numa construção pensada e numa pressão agressiva, mas coordenada. A sua maior virtude talvez resida na inteligência situacional: lê o jogo com clareza, ajustando blocos e posicionamentos em função do adversário e das exigências de cada momento. O FC Porto de Francesco Farioli representa um salto qualitativo em relação à equipa da época anterior, orientada por Anselmi. Hoje vemos um conjunto mais cerebral, mas também mais intenso, com processos claros e uma identidade bem definida.

O 4-3-3 surge como sistema de referência, mas nunca de forma rígida: a estrutura é constantemente animada por rotações dinâmicas. O médio defensivo recua para auxiliar a saída de bola, enquanto os interiores alternam entre apoio e atração, assegurando uma circulação fluida e a exploração consciente dos espaços. Farioli privilegia a construção desde trás, envolvendo centrais e guarda-redes, e não hesita em atrair a pressão adversária para depois explorar os espaços deixados livres mais à frente. Essa flexibilidade permite ao FC Porto jogar tanto em apoio curto, com paciência, como variar rapidamente para passes longos sempre que a construção curta é bloqueada.

No momento ofensivo, o treinador valoriza o envolvimento coletivo: normalmente, consegue colocar cinco jogadores no último terço, criando densidade suficiente para gerar desequilíbrios, seja por dentro ou pelas alas. Quando a pressão se torna sufocante, a equipa recorre ao passe longo estratégico, atraindo o adversário e libertando espaço para explorar nas costas da defesa.

Defensivamente, o Porto mostra-se camaleónico: pressiona alto quando sente que pode recuperar de imediato, mas sabe resguardar-se em bloco médio ou baixo, mantendo os sectores compactos. Na dinâmica ofensiva, os laterais surgem muitas vezes por dentro, oferecendo apoios interiores, enquanto os extremos dão largura e alongam o campo, abrindo corredores de progressão.

Entre as figuras em ascensão destaca-se Samu: o jovem avançado internacional espanhol, de apenas 21 anos, combina altura, velocidade e potência com mobilidade e técnica, sendo letal na finalização. Um perfil moderno que encaixa perfeitamente no plano do treinador italiano.

E os resultados ajudam a sustentar o discurso. O FC Porto lidera o campeonato após quatro jornadas, ostentando o segundo melhor ataque, com 11 golos marcados, apenas atrás do Sporting, que soma 13, e a segunda melhor defesa, com apenas um golo sofrido, apenas superada pela muralha do Famalicão, que ainda não foi batida. A vitória em Alvalade, frente ao eterno rival e bicampeão em título, teve sabor especial: não só pelos três pontos conquistados, mas pelo impacto moralizador que representa num grupo em construção. Foi mais do que um triunfo, foi um sinal de força, de maturidade e de capacidade para enfrentar os grandes jogos desde o início da época.

Existiu, por parte de Farioli, algo de simbólico na escolha do FC Porto para relançar a carreira. André Villas-Boas, um presidente com alma de treinador, não hesitou em apostar no ex Ajax sem pedir justificações sobre o colapso holandês. Um sinal de confiança, mas também de exigência: aqui, não há margem para repetir finais trágicos. No Dragão, os adeptos não se contentam com boas ideias ou arranques vibrantes, exigem títulos, consistência e a capacidade de vencer em todos os momentos.

O Ajax de Farioli brilhou enquanto teve frescura e confiança, mas colapsou quando as dificuldades apertaram. No FC Porto, a época é longa e impiedosa, marcada não só pela luta interna pelo título, mas também pela exposição europeia e pela necessidade de afirmar uma nova era. O treinador italiano terá de provar que é mais do que um entusiasmador de arranques, que consegue dar estabilidade, rotinas sólidas e soluções para os períodos inevitáveis de menor fulgor.

Por isso, este arranque deve ser lido com cautela. É verdade que Farioli trouxe alegria, intensidade e um futebol mais arejado. Mas a história ensina-nos que as épocas não se decidem em setembro ou outubro. O teste virá em março, abril e maio, quando o desgaste apertar, as pernas pesarem e os jogos se decidirem em detalhes de nervo, concentração e eficácia.

A pergunta impõe-se: este arranque ‘à Farioli’ vai resistir até ao fim? A história recente diz-nos que a montanha pode abanar. Mas também nos mostra um treinador que aprendeu à custa da dor e que traz consigo cicatrizes que podem ser transformadas em força. O FC Porto, um clube que sempre soube reinventar-se na adversidade, pode ser o palco ideal para esse novo desfecho.

Se conseguir domar o entusiasmo inicial, manter a intensidade, equilibrar emoção com estratégia e continuar a somar os três pontos no término dos 90 minutos, Farioli tem todas as condições para não só começar bem… como terminar melhor. E é isso que fará a diferença entre ser mais um treinador de passagem pelo Dragão ou o homem que devolveu títulos e identidade a um clube que vive para os conquistar.

«Liderar no Jogo» é a coluna de opinião em abola.pt de Tiago Guadalupe, autor dos livros «Liderator - a Excelência no Desporto», «Maniche 18», «SER Treinador, a conceção de Joel Rocha no futsal», «To be a Coach» e «Organizar para Ganhar» e ainda speaker.