De Laurentiis: este homem dava um filme
Cada vez que um clube português defronta o Nápoles vem-me à memória uma das entrevistas mais interessantes que tive com um dirigente de futebol. Corria o ano de 2008 e os napolitanos preparavam-se para defrontar o Benfica no play-off de acesso à Taça UEFA. À imagem de muitos donos de clubes, tratava-se de um homem cheio de si mesmo, que se sentava na sala de imprensa sem que ninguém requisitasse a sua presença. Gostava de conversar com os jornalistas sentado, com os repórteres de pé junto dele, transmitindo uma falsa sensação de submissão - na verdade o poder era daquele homem de olhos azuis e barba branca, que respondia às perguntas girando a cadeira e puxando as costas para trás, num misto de bonomia e alguma jactância que o berço (um homem rico) e o poder (dono de um clube) conferem.
Recorde-me de iniciar a conversa com Aurelio De Laurentiis na garagem do estádio San Paolo (hoje batizado de Diego Armando Maradona) falando sobre Manoel de Oliveira. Para um dos maiores produtores de cinema contemporâneos, o nome do realizador português impunha-lhe mais respeito do que o Cristiano Ronaldo de 2008. E foi a partir de aí, de coração aberto, que contou a história da refundação do Nápoles. Vale a pena recordar: «Estava a passar férias na ilha de Capri [ao largo de Nápoles], antes de embarcar para Los Angeles, onde iria produzir um filme de 100 milhões de dólares. Chamava-se O Dia de Amanhã e tinha como atores principais Angelina Jolie, Gwyneth Paltrow e Jude Law. Foi então que li no jornal a notícia da venda do Nápoles em tribunal [2004]. Acabei por desistir do filme e no espaço de uma semana a minha vida mudou radicalmente. Quando comprei o clube a Série C1 [terceiro escalão] já levava duas jornadas. O plantel foi formado por jogadores emprestados e nem sequer tínhamos equipamento. O nosso diretor desportivo foi obrigado a comprar, à pressa, camisolas numa tabacaria e mandá-las estampar para um jogo. Hoje estamos na Série A, construímos um centro de estágio com 1800 metros quadrados, voltámos a ter formação e vamos jogar com o Benfica na Taça UEFA.»
O tempo viria a mostrar que o projeto estava apenas no início. O Nápoles é hoje um gigante do futebol italiano, tendo conquistado dois dos últimos três campeonatos, com dois treinadores de estilos quase antagónicos como Luciano Spalletti e Antonio Conte. Por essa razão tenho de dar o benefício da dúvida a uma ideia radical partilhada por De Laurentiis nessa mesma conversa de há 17 anos: «Sou a favor de um campeonato anual, permanente, entre clubes de todos os países que tenham mais de um milhão de adeptos. 120 equipas disputariam várias fases de grupos e, nos últimos dois meses, teria lugar uma supertaça, cujo vencedor ganharia mil milhões de euros. Teríamos ao longo do ano um estádio virtual de 300 a 400 milhões de telespectadores, cada um a pagar 25 cêntimos por jogo.»
Foi, confesso, a primeira vez que ouvi uma proposta cuja base é a mesma da Superliga: uma competição fechada, sem intervenção da UEFA. «Por acaso a NBA pertence à FIBA? Qual a razão que deve impedir um clube de facturar mil milhões em vez de 100 milhões?», questionava, assumindo uma posição extremista sobre os campeonatos nacionais. «O fosso já existe! Os clubes mais pequenos estão todos à beira da falência! O futebol é uma indústria. Deve adequar-se ao mercado», justificou.
Passados estes anos e observando o crescimento do clube sob a gestão de Aurelio De Laurentiis, não tenho dúvidas de que tive a oportunidade de falar com um homem que estava à frente do seu tempo. Para já o conceito de uma competição supranacional, no tempo e no espaço, continua na gaveta, mas de ano para ano cresce a pressão nesse sentido, inclusive em Portugal. Querem um exemplo? As audiências dos jogos do PSG na Ligue 1 estão a cair a pique por falta de interesse manifestado pelos próprios adeptos parisienses...