Centralização: as duas falsas partidas, as lições do passado e a vitória de Pirro da Liga
As duas falsas partidas
Reinado Teixeira ganhou as eleições da Liga com 81% dos votos. No seu discurso de tomada de posse disse «(...) Hoje, a 16 de abril de 2025, a Liga não tem nenhuma proposta de aquisição de direitos na mão. Hoje, a 16 de abril de 2025, a Liga não tem, ainda, uma chave de repartição futura aprovada pelas sociedades desportivas. É este o nosso ponto de partida (...).»
Ter propostas de aquisição de direitos é o momento anterior a vender – é o fim do processo. Não as ter hoje, quatro meses depois, também é normal.
Sobre a chave de repartição, foi discutida numa Cimeira de Presidentes se deveria ser decidida antes ou depois do ciclo eleitoral da FPF e da Liga. Os novos órgãos eleitos iam liderar a centralização e, por isso, quase todas as sociedades desportivas concordaram em que deveriam ser os novos órgãos eleitos a decidir a chave - o Sporting foi uma das poucas exceções.
Quatro meses após a eleição dos novos órgãos da Liga, o ponto de partida não se moveu um milímetro, não há ainda chave de distribuição aprovada nem propostas de aquisição de direitos.
São as duas falsas partidas.
As lições do passado
A centralização dos direitos TV do futebol português ainda não existe formalmente, mas existiu, de facto, em 1998. Foi organizada pelo comprador, a Portugal Telecom (hoje Meo), através da Sport TV.
A Portugal Telecom tinha fundado a TV Cabo e desde 1994 prestava serviço em Portugal Continental. À época, só havia 4 canais de televisão em Portugal, as RTP 1 e 2 e a SIC e TVI, que iniciaram as emissões em 1992/93.
Como a TV Cabo Portugal permitia ver 30 canais estrangeiros, o sucesso era garantido – mas não foi. Os portugueses optavam pela pirataria, organizavam-se em prédios e condomínios e instalavam antenas parabólicas que permitiam ver ainda mais canais estrangeiros.
Quando comecei a trabalhar na TV Cabo Portugal, em 2001, conheci o primeiro comercial da empresa, o Mário. Contou-me que, em 1994, saía da sede, ia tentar vender porta-a-porta nas zonas mais ricas de Lisboa. Ao fim dos primeiros 3 dias, já tinha conseguido 4 clientes. A parte boa do seu dia era ouvir as recusas dos clientes, a parte aterrorizante era quando chegava de mãos a abanar e tinha um interrogatório liderado por um presidente cheio de genica. Em 1949, Egas Moniz venceu o Nobel pela descoberta da lobotomia – descobriu a necessidade por ter privado com pessoas iguais. No quarto dia de trabalho, o Mário foi acompanhado de altos cargos da empresa. Perante as recusas de adesão, discutiam com quem lhes abria a porta, alguns lisboetas não se ficavam e, à frustração e humilhação do interrogatório no fim do dia, acresceu a angústia de temer pela integridade física. Como a situação não melhorou, o Mário foi emprateleirado e contratou-se um exército de vendedores pagos à comissão. Erradamente, julgavam que o Mário era indiferente a não se vender, porque tinha um bom salário base da PT, estava resignado e amorfo. Uma grande mentira, porque o Mário, anos depois, sempre na prateleira, continuava a rir-se daqueles tempos.
Dois anos após o seu lançamento, a TV Cabo tinha apenas 50 mil clientes. Só em 1998, com a Sport TV, o fiasco acabou. Atingiu 1 milhão de clientes em 2000, dois anos depois.
Foi Joaquim Oliveira, e a sua Olivedesportos, quem fundou a Sport TV, em parceria com Portugal Telecom e RTP. Com a vantagem competitiva de ter o futebol português, a TV Cabo Portugal venceu a pirataria e vingou. O interlocutor dos clubes foi o Major Valentim Loureiro.
Os 3 maiores clubes recebiam o mesmo valor, e os outros clubes da Primeira Liga recebiam um valor muito idêntico entre eles. Só os da Madeira recebiam mais - era um Jardim e a razão era fácil de perceber depois de se ouvir a explicação - os emigrantes na Venezuela queriam ver o Marítimo, o Nacional não podia receber menos que o Marítimo e o União não podia receber menos que o Nacional. Nunca se percebeu bem se o Boavista não receberia um pouco mais do que os outros, mas não seria surpreendente se assim fosse.
Se o presente continua a distinguir o futebol como crónico vencedor dos 20 programas mais vistos na televisão portuguesa em cada um dos anos, o passado provou a importância do futebol na penetração da TV Cabo e, em 2008, na escolha do operador de telecomunicações – O Meo passou de operador com 20 mil clientes a 500 mil nos primeiros dois anos em que teve a Benfica TV. Hoje, o Meo é líder – pode agradecer ao SL Benfica.
A vitória de Pirro da Liga — a entrega à ADC do modelo de comercialização centralizada
A precipitada, e extemporânea, entrega na Autoridade da Concorrência da proposta de modelo de comercialização centralizada dos direitos audiovisuais do futebol profissional, no passado dia 30 de julho, foi descrita como sendo «:::um primeiro passo importante que nos levará ao final feliz». Se não há dúvida que não estava pensado como sendo o primeiro passo, infelizmente, também foi um passo trocado.
Entregar um documento, sem qualquer inovação, que permite apenas um único comprador e o futebol principal continuar todo fechado, ter vários jogos previstos às 13h00 (!?), a Primeira Liga ser jogada de sexta à noite a segunda à noite, é frustrante para os adeptos – para as sociedades desportivas, vamos ver como acaba.
Plutarco descreveu a avaliação de Pirro sobre a vitória numa batalha, ponderadas as perdas que os romanos lhe tinham infligido – «mais uma vitória como esta e perco a guerra». Se a Liga não reformular o que entregou, perdeu a centralização.
Quatro meses após a tomada de posse da nova direção da Liga, já são três os erros graves cometidos na gestão do processo.
A 11 de Abril foi cometido o primeiro erro com a desvalorização do mais valioso conteúdo televisão em Portugal – apenas para se baixar as expectativas dos clubes. Os clubes sabem que se os direitos valerem o mesmo que em 2015, a receita atual é de 241 ME (atualizando a inflação).
Dois meses depois, o segundo erro foi cometido pelo CEO da Liga numa entrevista à Bloomberg. Anunciou que ponderava vender 10% da Liga Centralização, quando esta empresa se limita a comercializar os direitos dos clubes. A propriedade dos direitos dos jogos, mesmo depois de 2028, continua a ser exclusiva dos clubes, não é transferida para a empresa Liga Centralização. Pior ainda, aventou a possibilidade a Liga explorar diretamente a venda ao consumidor, o que seria catastrófico e absolutamente desnecessário em Portugal.
A precipitada e extemporânea entrega da proposta de modelo de comercialização à Autoridade de Concorrência foi o terceiro erro e pode ter consequências irreversíveis. Tem a Liga de ter humildade e fazer um novo documento.
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