A partir de 2028/29 os direitos TV têm de ser centralizados - Foto: IMAGO

Centralização de direitos: a proposta da Liga explicada

O documento que a Liga entregou à Autoridade da Concorrência não contém qualquer valorização do produto ou chave de distribuição. Haverá a possibilidade de um comprador único? Veremos... Para o Benfica não há qualquer desenvolvimento relevante

A Liga Portugal submeteu à Autoridade da Concorrência um documento com 62 páginas, ao qual A BOLA teve acesso e que lhe explica, agora, em pontos, o que está proposto. A centralização dos direitos, obrigatória por lei, irá afetar as receitas dos clubes e o modo como os portugueses vão consumir futebol.

Antes de mais, é preciso explicar que este documento não é final, é um rascunho e não a proposta formal prevista no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 22-B/2021, que determina a titularidade dos direitos de transmissão televisiva e multimédia, e demais conteúdos audiovisuais, relativos aos campeonatos masculinos de futebol das I e II Ligas e estabelece regras relativas à sua comercialização.

Contactada por A BOLA, a AdC começou por frisar este mesmo ponto e informou que haverá novos encontros com a Liga Portugal, previstos para setembro sabe o nosso jornal, para debater a proposta, que tem de se tornar oficial e ser apresentada, por Liga e Federação, até ao fim da época. Sublinhe-se, já agora, a noção de direitos audiovisuais, ou seja, não se trata apenas de cingir a questão à TV, mas também ao consumo digital. No documento que a Liga enviou, fica também expressa alguma preocupação em relação ao preço que os consumidores possam vir a pagar pelo acesso ao produto, distribuído em lotes – no fundo, dias e horários dos jogos (ver abaixo).

DURAÇÃO

Para começar, quem comprar Direitos à Liga - há diferentes pacotes, chamados lotes [ver abaixo] que podem ser negociados - vai tê-los durante cinco anos. No final desse ciclo, os Direitos voltam para a Liga, através da empresa formada para este efeito: a Liga Centralização. É essa a duração a contratar e a Liga baseia este período em vários fatores, sendo que a tendência na Europa, nomeadamente das cinco grandes ligas, é de contratos de 4 ou 5 anos. Fatores a ter em conta para esta ideia são um maior incentivo ao investimento, a possível entrada de novos concorrentes, uma menor probabilidade de aumento de preço para os consumidores.

UM ÚNICO COMPRADOR. DISCÓRDIA?

Este é um ponto que a Liga e a Autoridade da Concorrência provavelmente vão debater. No documento, há um esforço notório e assumido por parte da Liga em argumentar que não deve haver uma cláusula No Single-Buyer. Quer isto dizer o quê? Que a Liga não pretende a introdução de uma cláusula que impossibilite a compra dos Direitos apenas por uma entidade.

Refira-se que o próprio documento vai no sentido do benefício de haver mais do que um comprador, mas em caso de apenas uma entidade comprar todos os Direitos, fica claro que a Liga deve definir, em conjunto com a AdC a «exploração de determinados jogos em regime de co-exclusividade ou até de sublicenciamento de uma percentagem dos direitos».

No fundo, se o comprador de todos os jogos for apenas um, poderá estar obrigado a que uma percentagem desses jogos seja transmitida por outrem. De referir que o sublicenciamento é sempre possível em qualquer situação, ou seja, haver um comprador que, depois, passa a possibilidade de transmissão a um terceiro, desde que dentro das regras impostas pela Liga.  É o que acontece hoje, com a NOS, por exemplo, a ser detentora dos direitos TV do Benfica e a cedê-los para transmissão à BTV. A operadora, tal como a concorrente MEO, detém direitos de mais clubes e ambas cedem-nos à Sport TV, das quais são acionistas.

Na sua argumentação para que a cláusula de impossibilidade de comprador único não exista, a Liga reflete ainda que no mercado português existem poucas entidades com capacidade financeira para a compra dos direitos em causa. Para além disso, lê-se também a preocupação relativa ao baixo poder de compra dos consumidores os quais, nesse sentido, sairiam beneficiados com a concentração do produto.

Com muitos compradores, diz a Liga, há ainda uma apreensão sobre o aumento da pirataria, derivado do aumento de subscrições necessárias para ver todos os jogos da Liga e II Liga.

QUEM PODE COMPRAR, COMO E POR QUANTO?

As coisas ficam mais interessantes a partir daqui. Desde logo porque não há um preço mínimo definido – tal como não existe a parte fundamental de toda a discussão: a chave de distribuição do dinheiro pelos clubes.

Moreirense venceu Alverca (2-1) com um golo já ao cair do pano
Receção do Moreirense ao Alverca, da jornada inaugural da Liga, foi transmitida pelo V+

Ou seja, no rascunho que enviou à AdC, a Liga não refere qualquer preço mínimo a pagar por cada pacote ou, sequer, pela totalidade dos mesmos. No fundo, não há neste momento qualquer referência à valorização que a Liga faz do próprio produto e que diga que quem comprar tem de investir pelo menos X. Portanto, há, desde já, uma pergunta que vai ficar por responder. Por quanto? Uma resposta que, obviamente, é fundamental para toda a indústria e à qual os clubes esperam ter clareza o mais rápido possível.

E quem pode comprar? O procedimento diz que «é permitida a apresentação de propostas individualmente, através de consórcios, por empresas comuns e por entidades afins»; é ainda «admissível a participação de entidades participadas por operadores concorrentes (a montante ou a jusante) desde que declarem atuar com plena independência, garantam que não comprometem os princípios da concorrências, igualdade e transparência». Esta última alínea abre as portas à Sport TV, que tem como acionistas três operadoras concorrentes: Vodafone, MEO e NOS. Falta saber se a AdC tem alguma objeção.

Sport TV, BTV e V+ ( a Media Capital, de Mário Ferreira, passou o Moreirense-Alverca neste canal, mas o dérbi com o Vitória terá transmissão na TVI, e o mesmo sucederá quando os cónegos receberem os grandes) são os canais que estão a emitir jogos da I Liga. Não há, já agora, nenhuma menção explícita, no documento, ao facto de uma SAD estar impossibilitada de concorrer à compra.

O ecossistema de potenciais compradores de Direitos audiovisuais e canais que estão ou podem vir a transmitir jogos da I Liga

A DAZN tem direitos sobre competições internacionais, como a Premier League ou a Liga dos Campeões ou a La Liga e é um player ativo no nosso mercado. Não é ainda de descuidar uma possível entrada de fundos ou das plataformas de streaming. As últimas têm-se virado cada vez mais para a compra e transmissão de desporto ao vivo - mesmo sem serviço linear de TV, podem sempre sublicenciar – e a alguns dos primeiros foi apresentado, ainda no tempo de Pedro Proença, o projeto de centralização.

Já agora, há vários requisitos, incluindo técnicos, que têm de ser preenchidos para que se possa participar no leilão, entre os quais capacidade de transmissão e distribuição adequada para atingir, no mínimo, 80% da população.

Como podem comprar? Participando no leilão, através de proposta fechada e confidencial. A Liga, como se disse, não apresentou nenhum valor no documento, mas refere que «define preços de reserva para cada um dos lotes». Esse Preço de Reserva – que é confidencial em todo o processo e depositado num notário - representa o «preço médio mínimo, definido por época, a partir do qual a proposta com a oferta económica mais elevada, que cumpra ou exceda esse valor, será adjudicada».

QUEM GANHA O LEILÃO? E O QUE SUCEDE SE NINGUÉM ATINGIR O PREÇO DE RESERVA?

Ganha a melhor proposta financeira (a Liga Centralização pode, se assim o entender, atribuir uma valorização de até 5% sobre valor da proposta financeira apresentada pelo Licitante que melhor demonstrar o cumprimento desses requisitos), mas uma vez que não há um preço mínimo definido à partida, o Preço de Reserva pode não ser atingido. O que sucede, então, nesse caso?

Quatro hipóteses. A Liga pode:

1.      atribuir o(s) Lote(s) à melhor proposta financeira, mesmo que esse montante não seja alcançado; ou

2.      pode iniciar um processo de negociações privadas com potenciais interessados, ou

3.      admite a comercialização de um lote de forma não exclusiva, ou

4.      a Liga transmite os conteúdos em canal ou plataforma própria.

LOTES E HORÁRIOS DE JOGOS

No documento fica claro em que dias e horas se vão jogar a I Liga e a II Liga. Tal como sucede agora, a jornada espalha-se por quatro dias. Entre sexta-feira e segunda-feira. E isso permite a venda consoante os dias ou as horas.

Imagine-se, portanto, a compra da sexta-feira da I Liga. Terá um total de 32 jogos e a garantia de que desses 32, 10 terão a presença de Benfica, FC Porto ou Sporting, exceto clássicos. O lote de sábado engloba 103 jogos de Liga e 178 de Liga II enquanto domingo e segunda-feira estão juntos num mesmo lote. Há ainda a possibilidade de se comprar lotes por dias+joker: este último acrescenta a garantia de pelo menos um clássico, um dérbi entre SC Braga e Vitória e ainda os jogos de play-off.

Há também a possibilidade de comprar lotes por horários. Exemplificando, o Lote B por horário significa a compra das 18h00, aos sábados e domingos, da I Liga.

Os horários dos jogos propostos pela Liga para a I e II escalão

CONTROLO ABSOLUTO DA LIGA

Há algo que ao longo do documento também se esclarece. A Liga Portugal vai ter um controlo absoluto do produto. Isto porque os próprios resumos dos jogos estarão não só incluídos na compra como serão fornecidos pela Liga Portugal, com a exceção dos 90 segundos previstos no Direito à Informação que abrange qualquer operador televisivo: as TVs podem passar um minuto e meio de imagens dos jogos, sem pagarem qualquer preço, uma vez que é considerada informação relevante para o público. Caso o comprador queira produzir e editar os próprios resumos, terá de ter a autorização expressa da Liga.

Mais do que isso, a Liga fica também com controlo sobre tudo o que se passa imediatamente antes, durante e imediatamente após um jogo. Nesse caso, esclarece o documento que «a Liga Portugal detém os direitos de obtenção e exploração sobre os Dados Estatísticos Oficiais das suas Competições, designadamente dados recolhidos para fins de apostas desportivas, ligas fantasia, observação de jogadores e jogos (vulgo scouting) ou outros, relativos a acontecimentos que ocorram no terreno de jogo, durante cada evento desportivo das referidas Competições ou inerentes a essas». Os detentores de direitos apenas poderão usar estes dados e não outros.

Também é preciso entender que a exploração de realidade virtual aumentada ou de NFTs relativas a imagens de jogos ficam a favor da Liga. Há, ainda, limitações impostas à promoção dos conteúdos e à publicidade. Assim, quem tiver licença para transmitir pode passar publicidade «imediatamente antes e após as transmissões dos espaços reservados à Liga Portugal, desde que a mesma não inclua a utilização da imagem de jogadores e outros elementos dos Clubes».

A POSIÇÃO DO BENFICA

Refira-se que o Benfica enviou uma carta à Liga e aos presidentes dos outros clubes em que se posicionou a favor da suspensão da centralização dos direitos audiovisuais e anunciou a saída da Liga Centralização, «não acreditando que o processo em curso satisfará as necessidades do futebol português e do Benfica em particular».

Em nota publicada no site, a Liga afirmou que o processo proposto obteve «unanimidade pelo Conselho de Administração da Liga Centralização, constituído por Alverca, FC Porto, SC Braga, Sporting, Vitória SC, Feirense, Leixões e Marítimo, com o conhecimento de todas as Sociedades Desportivas do Futebol Profissional e da Federação Portuguesa de Futebol».

Contactada por A BOLA, fonte oficial do Benfica lembrou que a SAD encarnada já tinha saído da Administração da Liga Centralização na altura da definição da proposta, e referiu que por ter sido dado conhecimento do conteúdo da mesma pela Liga Portugal, não se pode inferir a anuência do Benfica sobre o documento em causa. Por outro lado, adianta a mesma fonte do clube, todas as preocupações anteriormente expressas pelo Benfica não têm neste documento qualquer desenvolvimento relevante.