Benfica: o poder de 655 ou 0,26 por cento
Os sócios do Benfica chumbaram, com toda a legitimidade, o relatório e contas do exercício da época 2024/2025 do clube, com o terceiro resultado líquido positivo melhor de sempre, e o regulamento eleitoral, nas duas Assembleia Gerais (AG) seguidas do último sábado. Na primeira, votaram 1.188 sócios (63,49 por cento dos votos contra, 36,51 a favor), na segunda 665 (69,86 por cento contra 30,14 a favor). Representam, respetivamente, 0,47 por cento e 0,26 por cento do universo de 255.117 sócios elegíveis para votar nas próximas eleições.
Duas gotas no oceano do universo total dos sócios, que ultrapassa os 400 mil, ainda menos se considerarmos todos os benfiquistas. Pouquíssimos, concordaremos todos, para tamanha importância das decisões que são tomadas nas AG.
Numa altura em que o futuro do clube está em discussão, não vi alguém preocupado em refletir sobre este status quo completamente anacrónico com os dias que correm.
Atenção, que fique bem claro, não se está aqui a pôr em causa o direito que assiste a quem participa nas AG, nem a atacar um processo que, na letra das leis ou dos estatutos, é inatacável, afinal, ainda e seguramente por muito tempo, e como disse Wiston Churchill (ou pelo menos a quem é atribuída a frase), a democracia é o pior dos sistemas, com exceção de todos os outros. É, pois, verdade ao mesmo tempo que o sistema democrático ainda é o melhor, mas também que ainda não é a forma perfeita de governação. Talvez lá nunca chegaremos.
Vem isto a propósito, justamente, dos últimos acontecimentos nas AG do Benfica. Não só foram decididas por furiosa minoria, no universo dos sócios, como há suspeitas fundadas, depois das revelações de alguns candidatos à presidência, de que muitos daqueles sócios estariam capturados por interesses eleitorais.
Talvez por servirem mais interesses particulares e imediatos que coletivos e perenes, nada se tem falado do funcionamento da vida democrática do clube. Nem quando foram discutidos e votados favoravelmente e por larguíssima maioria os novos estatutos, que partindo do bom princípio do escrutínio à Direção ameaçam tornar ingovernável o clube — desde ontem, dia em que entraram em vigor, qualquer Direção fica de imediato demissionária depois de duas deliberações negativas em AG sobre discussão e aprovação de relatório de gestão e das contas de exercício.
Em resumo, e simplificando, arregimenta-se 665 sócios, ou 0,26 por cento dos sócios elegíveis para votar, e deita-se abaixo uma Direção. Seguem-se eleições. E começa tudo outra vez. Não é preciso assim tanto para que se recorra a bomba atómica.
Também é bom que fique claro que não se está a pôr em causa a bondade de quem sugeriu e aprovou tais alterações, seguramente por querer um clube mais transparente, mais bem governado e com regras mais apertadas e exigentes para quem chega ao poder, que durante quatro anos poderia exercer funções praticamente sem dar cavaco a alguém. Daí, porém, até se passar a uma situação em que poderá haver eleições ano sim, ano não, ou mesmo ano sim, ano sim, vai uma larga distância.
Por exemplo, qualquer AG do Real Madrid representará, sempre, mais a vontade geral dos sócios que qualquer AG Benfica — os sócios são representados por delegados, eleitos para o efeito. Aqui fica uma ideia que poderia justificar reflexão.
Mas quando o esforço de muitos é maior para evitar o voto eletrónico (com isso impossibilitando-se que votem o maior número de sócios possível) que para evitar que haja o mínimo de dúvida sobre a eficácia e a transparência dessa ferramenta está tudo dito.
Também foi pouco, se existiu, o esforço que se viu em alguns candidatos, anunciados como restauradores dos verdadeiros valores do clube ou uma espécie de benfiquistas de bem, em procurar alternativas, como avançar com voto por correspondência.