A lição de vida do avô do Bernard
Todos os anos tiro duas semanas para estar longe de quase tudo. Numa pequena aldeia do Gerês, não tenho televisão e a internet chega tão a conta-gotas que o deslizar do dedo no telemóvel torna o exercício de acompanhar as notícias numa viagem de comboio a vapor, mas sem o glamour da carruagem e da própria viagem. Assim, agradeço quase não ter internet e deixo o telemóvel no quarto. Só não digo que tudo me passou ao lado porque, no desporto, isso é impossível. Há sempre um ponto de encontro com fóruns ao vivo de comentários sobre o mercado de transferências e o arranque do campeonato. Isto, enquanto Portugal ardia. E disso também fui recebendo feedback nos mesmos fóruns.
O tempo, aqui, passa mais devagar. Na margem de um pequeno rio, a água é tão fria que convida mais à conversa do que a banhos. E foi enquanto ganhava coragem para um mergulho – exercício que pode muito bem durar eternidades… – que conheci o Bernard, francês de 45 anos, tal como eu de férias. Trabalha para uma empresa de tecnologia sediada em Paris, mas vive na Costa da Caparica. Um chamado nómada digital, mas quede nómada já nada tem: escolheu Portugal para ficar em definitivo e beneficia de poder trabalhar à distância.
A escolha não é inocente. Um avô minhoto deixou plantada a semente de Portugal, deixou a língua — falada hoje pelo Bernard com muitos erres — e deixou o prazer de degustar a vida. «Apaixonei-me por Portugal por causa da paisagem, do clima, da comida, mas acima de tudo por causa do meu avô», contou, num tom de voz de quem está a ganhar balanço para contar, com emoção, o resto. Não me enganei:
«O meu avô emigrou, conheceu uma francesa, não correu bem... Tirando a minha mãe, claro [risos]. Regressou ao Minho sem grande coisa. Vivia numa aldeia onde eu gostava de passar as férias de verão. Vivia com pouco, trabalhava muito, como todos nessa aldeia. Havia anos em que o tempo lhe estragava as colheitas. Mas nunca o ouvi queixar-se da vida. Nunca se queixava de nada. Queixar-se era um luxo que não podia pagar, contava-me. E começava de novo. E sorria, contando-me histórias», desabafa Bernard.
Lembro-me do Bernard ao sentar-me em frente ao computador, esta quarta-feira, no regresso ao trabalho. Lembro-me dele ao ter agora uma ideia mais real do que têm sido as últimas quase três semanas em termos de incêndios. E lembro-me dele ao pensar nos muitos que perderam tanto e têm de recomeçar de novo.
Neste processo, já sabemos o que vai acontecer: a ajuda não vai chegar de igual modo a todos. Nem sequer vai chegar a todos. Há quem se mexa melhor, há quem conheça melhor quem terá a missão de distribuir a ajuda para minorar o impacto financeiro dos prejuízos. Há quem vá partir e repartir e não se considera nem burro nem desprovido de arte para não ficar com a maior parte. Há quem vá receber mais rápido, há quem tenha de esperar, há até quem nem saiba como concorrer a essas compensações e não tenha quem ajude. Porque há locais em Portugal tão recônditos e cristalizados que… só a internet e a tecnologia conseguem lá chegar!
Nesta hora que gostava que fosse de rescaldo – o calor e a mão humana não tardarão a desmentir-me, creio – manifesto a dor de ver o meu País queimado, o profundo pesar pelos que perderam a vida, a solidariedade com quem tanto perdeu e a admiração comovida pelos que estão a refazer a vida sem se queixarem.
PS1 – Enquanto me atualizo com o que aconteceu nas últimas semanas, dou com vários artigos sobre a falta de espaço de Rodrigo Mora no modelo e no onze de Farioli. E que pode até ir para a Arábia Saudita. O menino que carregou com o FC Porto de cacos às costas e que faz magia com a bola não tem espaço… Entrei em sobressalto, mas ainda é cedo para comentar o assunto: faltam-me dados e mais tempo para maturar a informação. Mas não para abrir a boca de espanto… Nem sei (ainda) o que vos diga…