Paulo Jorge Pereira não conquistou a medalha com que sonhava, mas conquistou o respeito do andebol mundial e apresentou à elite um grupo a que todos se renderam. E já tem reserva para o próximo comboio que deve levar a Seleção Nacional ao Europeu
Todos os dias elogiou o grupo, mesmo quando estes perderam. E jura que não fez favor nenhum a uma Seleção Nacional que entusiasmou toda a gente, até quem não era fã da modalidade. O histórico quarto lugar no Mundial da Noruega colocou o andebol nas primeiras páginas, nos telejornais generalistas e em cada esquina. O discurso dos protagonistas, esse não muda: que este reconhecimento se prolongue para lá deste mês. Paulo Pereira não deixa cair o tema.
Paulo Jorge Pereira durante o Mundial de andebol
— Já conseguiu, finalmente, relaxar?
— Não, ainda não consegui relaxar [risos]. Tenho mesmo que dormir mais um bocadinho. Mas estes dias são assim.
— E como viveu aquela recepção no aeroporto à chegada da Seleção Nacional?
— Foi muito bom. Aqueles miúdos e aquelas miúdas com aquele brilho nos olhos, a chamarem pelos nomes dos jogadores. Conhecem os atletas todos. Por isso, foi espetacular aquela recepção. Confesso que esperava mais gente, mas à hora que foi, não era fácil.
— O facto de reconhecerem os atletas pelos nomes é uma vitória do andebol?
— Sim, sim. Ainda por cima temos uma equipa jovem e os mais pequenos acabam por se identificar ainda mais com os atletas mais jovens. É um passo importante. O andebol sempre teve referências, mas agora acho que tem mais referências ainda. E os mais novos identificam-se mais facilmente com estes atletas que também são mais jovens.
— A esta distância, já consegue fazer balanços? Este Mundial foi o que estava à espera ou superou as expetativas?
— Sendo honesto, tenho de dizer que superou um bocadinho, porque a meta era irmos aos quartos, eu achava que éramos capazes de ir aos quartos. Ir às meias já podia ser um bocadinho mais difícil, até porque da forma como nós começamos... Perdemos o Miguel Martins e o Cavalcanti em cima da hora e, por isso, tivemos de fazer algumas adaptações que acabaram por ser espetaculares também. Mas, naquele momento, ficámos um pouco na dúvida do que é que poderia acontecer. Em termos defensivos, perdemos um defensor central importante. Tivemos de recorrer ao Salvador e ao Vítor Ituriza sempre, em nove jogos, sempre os mesmos. Mas o Salvador também tem um coração que aguenta tudo... Nós temos ali vários atletas espetaculares.
Demorava horas no autocarro para regressar a casa, em Samora Correia, mas nunca desistiu. Essa mentalidade que Salvador Salvador elogia em Ronaldo, está-lhe no sangue e na «alma» como elogiou o selecionador nacional
A seleção Nacional de andebol celebra com os adeptos mais um triunfo no Mundial de andebol
— International Handball Federation (@ihfhandball) February 5, 2025
— É um grupo único...
— Temos o Rui [Silva], que é o domador de leões. Depois temos os leõezinhos, um de cada lado [Kiko e Martim], todos em perfeita sintonia uns com os outros. A combater com as melhores seleções do Mundo, de olhos nos olhos. E depois podemos ganhar, podemos perder, mas o compromisso está ali e é bem patente. Foi sempre isso que senti e creio que as pessoas também sentem, acho que as pessoas gostam de nós por causa disso. Depois o resultado acaba por ficar em segundo plano, embora, obviamente, que nós lutámos por ele até o fim. E lutámos mesmo. Lutámos até o fim.
— Já digeriu aquela derrota com a França?
— Custa. Custa. Custa, um bocadinho... Mas eu tenho a agradecer isto porque agora nós teremos chamado mais a atenção. Talvez, por ser mundial e por ser quarto lugar, a melhor classificação de sempre e tudo isso. Mas o que é certo é que tudo o que fizemos até agora não foi menos difícil do que isto. O sistema de apuramento para os Jogos Olímpicos implica ficar sempre no top 8 mundial ou europeu, anterior aos Jogos, e depois ir a um pré-olímpico, que é sempre jogado fora de casa, e temos de ganhar, normalmente, à equipa da casa para nos qualificarmos para os Jogos Olímpicos. E conseguimos. O percurso é muito difícil. Jogar um Europeu, por exemplo, é muito mais difícil do que jogar um Mundial. O Mundial tem equipas de diferentes continentes e o Europeu tem equipas que não estão ainda no nível do Europeu. Só equipas europeias onde o andebol é muito mais forte. Portanto, um quarto lugar, por exemplo, num Europeu significa muito mais do que um quarto lugar num Mundial. E nós já tivemos um sexto lugar, já tivemos sétimo em Europeu. Portanto, isto são tudo performances fantásticas para o nosso grupo de trabalho.
Inspirada pela ligação sentimental ao malogrado guarda-redes, a Seleção de Paulo Jorge Pereira junta talento a uma crença inabalável, para fazer história no Mundial de andebol
🇵🇹 Francisco Kiko Costa, winner of the Best Young Player Presented by Lidl award ⭐ Not a future star but a player who already makes history with Portugal — fourth place at #CRODENNOR2025 and the country's best scorer in a single edition of the World Championship 🤩 pic.twitter.com/AbrGabQHRI
— International Handball Federation (@ihfhandball) February 3, 2025
— Em que momento é que o professor acreditou que, de facto, Portigal ia fazer história?
— Acho que quando começámos a jogar com os Estados Unidos havia algumas dúvidas, depois fomos crescendo e fomos percebendo que podíamos ir longe, porque aquilo começou tudo a funcionar direito. As alternativas, as adaptações que fizemos, começou tudo a funcionar lindamente. Preparamos também os jogos com o máximo de detalhe. Temos desenvolvido também o processo em termos do que é a preparação do jogo. Toda a gente a funcionar, correu bem. É um caminho a percorrer porque há sempre detalhes que se podem melhorar. E depois, sobretudo, a forma como esta gente encara o jogo. É muito mais fácil para o treinador.
— Facilita o trabalho?
— Quando temos atletas assim, eu faço a minha parte e eles também fazem a parte deles, é simples. Tem sido espetacular nesse sentido.
Gustavo Capdeville foi o guarda-redes do jogo com a França no Mundial
Seleção Nacional perdeu (35-34) nos últimos segundos frente aos campeões da Europa e regressa a casa com a melhor classificação de sempre em Mundiais: o quarto lugar. Gustavo Capdeville foi o MVP do encontro e Kiko Costa o melhor jogador jovem do Mundial
— Disse várias vezes durante este Mundial que sentia que havia um olhar diferente para a Seleção. Um respeito quer dos árbitros, quer dos adversários.
— Senti sim. Quando temos o melhor jogador do mundo, Mathias Gidsel, a chegar à minha frente e fazer uma vénia. Eu olhei e disse: ‘Ei, o que é que estás a fazer?! Dá-me cá um abraço’. Foi espetacular ver como é que os atletas interagiram naquele momento de descontração depois do Mundial ter terminado. E entre os treinadores também. Até perdoei ao Jakobssen o facto de no ano passado ter perdido com a Eslovénia. A Dinamarca perdeu num jogo que para eles já não interessava com a Eslovénia e, por causa disso, acabámos por não disputar o quinto e sexto lugar. Até lhe perdoei isso e ficámos amigos outra vez. Foi um ambiente espetacular. E o que sentimos foi isso, foi que estamos todos ali de igual para igual. Porque antes chegávamos ali e andávamos sempre um bocadinho introvertidos. Ninguém conhecia ninguém. E hoje em dia não. Hoje em dia estamos mais ou menos ao nível deles. Podemos ganhar, podemos perder, mas esse respeito existe.
— Este Mundial acabou definitivamente com a ideia de que nós somos outsider?
— Acho que isso acabou definitivamente... Foi o carimbo, o selo que faltava na qualidade que nós temos no jogo. Mas esta consistência tem de vir do País todo.
Recebi muito mais mensagens de treinadores de nível internacional do que dos meus companheiros portugueses. Isso recebi. Muitos, muitos, de nível internacional. Também recebi de alguns portugueses, mas se calhar vão mandar agora...
— International Handball Federation (@ihfhandball) February 2, 2025
— Sentiu isso com a presença do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa e do primeiro-ministro, Luís Montenegro?
— Foi espetacular, tê-los lá juntos e até no balneário, depois do jogo. Quando eu digo do país todo, digo que é preciso continuarmos a pensar o desporto. Se é importante para a sociedade, se não é importante. Qual é o papel? Desde os mais novos até ao topo, até aos profissionais. Porque essa consistência vem também muito daí. Não podemos deixar só pedras no charco. De vez em quando precisamos de mais consistência. Tudo tem de ser um bocadinho mais pensado. Em termos do que é que são também os apoios e a forma como os damos. Nós ganhamos ou lutamos com seleções que viajam em charter. E eu não estou a dizer que quero viajar em charter. Mas é para perceberem que existe uma diferença. Nós temos de viajar muitas vezes em low cost. E depois vamos competir com eles. Não quero andar aqui a fazer-me de vítima, nada disso, mas as pessoas têm de perceber que, por vezes, não lutamos em igualdade de circunstâncias. Estamos a falar de países que investem milhões. A França, por exemplo. Eles têm polos desportivos, os melhores atletas trabalham lá, estudam. Depois jogam aos fins de semana nos seus clubes. Vários polos distribuídos pela França inteira. São milhões em investimento. Perdemos por um. Isto é algo extraordinário. Para haver mais consistência tem de haver também esse Investimento.
Os nórdicos derrotaram a Croácia por 26-32 e conquistaram o quarto título mundial consecutivo com recorde de assistência em jogos na Noruega: 13384 espectadores!
Só lhe disse uma coisa. Disse-lhe: ‘Eu sem ti não sou nada’. E ele continuou a chorar. Foi uma descarga emocional enorme. Também chorei por dentro, mas por fora aguentei-me.
Rui Silva e Pedro Portela são a imagem do desalento após a derrota com a França no Mundial
Martim Costa e Victor Iturriza na equipa All Star. Francisco Costa foi eleito jogador jovem do Mundial e o MVP foi o incontornável Mathias Gidsel que foi também o melhor marcador com um recorde de 74 golos
— Podia ter aproveitado para pedir isso ao primeiro-ministro.
— Sinto que pode começar a ser melhor. Espero que não sejam só 15 dias, que andamos por todo o lado e depois vamos lá dormir outra vez, fazer uma sesta prolongada. Espero. Mas tenho a sensação que sim, que pode melhorar.
— Marcelo Rebelo de Sousa e Luís Montenegro foram juntos ao balneário? Como foi?
— Foram no final do jogo. Foi interessantíssimo. Eles proferiram umas palavras. Houve ali muito boa energia, acho eu. Gostei. Foi tudo normal, tudo ok. Impecável. Para nós foi um gosto tê-los lá.
— Quando olha para este Mundial, o que é que traz de melhor? Além do resultado, naturalmente. Que experiências?
— Nós jogámos sempre no limite. E o bonito é nós jogarmos sempre no limite, conseguirmos criar muitos problemas aos adversários. E quem nós deixamos para trás? Nós olhamos naquele main round... Eu olho para aquela tabela e ainda fico boquiaberto. Quem deixámos para trás?! Estamos a falar de potências mundiais ao nível do andebol.
A Dinamarca é campeã do Mundo, quatro vezes! Perdemos com a Dinamarca que não perde há oito anos! Para mim é a seleção melhor de todos os tempos. Nunca existiu nenhuma seleção igual a esta. Fisicamente, taticamente, tecnicamente. O Gidsel é estratosférico. A questão é saber quando e quem vai ganhar a esta equipa em Mundiais.
O capitão domador de leões, o melhor bailarino do Mundo, perdão pivot, e o mais bem vestido. Cansados mas divertidos, Rui Silva, Victor Iturriza e António Areia receberam presente que assinala momento único do andebol português e retribuíram com oferta inesperada
— Arranjou uma data de novos inimigos
— Não, quer dizer são bons inimigos. Todos eles nos respeitam. Todos conhecem as dificuldades que temos. Somos um país pequeno, com uma base de recrutamento de atletas pequena. Até temos muitas desculpas se quisermos, mas não queremos. Queremos continuar e lutar sempre até ao fim, não queremos ter desculpas e continuamos. Portanto, é isso que fazemos e vamos lutar sempre até o fim.
— Recebeu os parabéns de alguém que não esperava?
— Recebi muito mais mensagens de treinadores de nível internacional do que dos meus companheiros portugueses. Isso recebi. Muitos, muitos, de nível internacional. Também recebi de alguns portugueses, mas se calhar vão mandar agora...
— A imagem do professor agarrado ao Kiko a chorar marca também este Mundial? O que lhe disse?
— Foi depois do jogo com a Espanha. Ele deu tudo. Acho que foi um dos melhores jogos que eu o vi fazer pela seleção. E quando vemos um puto, ele tem 19 anos, a dar tudo e a chegar ao fim e a desfazer-se...Só lhe disse uma coisa. Disse-lhe: ‘Eu sem ti não sou nada’. E ele continuou a chorar. Foi uma descarga emocional enorme. Também chorei por dentro, mas por fora aguentei-me.
Pivot do FC Porto saiu de Cuba há 10 anos e agora chegou ao topo do Mundo, tendo sido escolhido para o All Star do Mundial. Mas, para o atleta de 34 anos, este prémio não é individual.
Victor Iturriza foi o melhor pivot do Mundial
— Essas emoções foram maiores nas vitórias do que nas derrotas?
— Perdemos com o campeão do Mundo em título. Com o campeão da Europa, com o campeão da Europa em título. E podíamos ter ganho. Naquele jogo estivemos muito perto. A dada altura, com a Dinamarca, desisti do jogo a pensar já no encontro com a França. Não valia a pena porque eles são realmente superiores. A Dinamarca é campeã do Mundo, quatro vezes! Perdemos com a Dinamarca que não perde há oito anos! Para mim é a seleção melhor de todos os tempos. Nunca existiu nenhuma seleção igual a esta. Fisicamente, taticamente, tecnicamente. O Gidsel é estratosférico. A questão é saber quando e quem vai ganhar a esta equipa em Mundiais. Eles perderam no Europeu ano passado, descansaram alguns atletas e às vezes também se enganam. Mas o que é certo é que... Portanto nós só perdemos com essas duas seleções. Dizer o quê? Fizemos nove jogos. Temos de estar muito felizes. Só nós sabemos o que é jogar sempre no limite. É espetacular. Sempre com as borboletas sempre ali na barriga... Foi uma viagem espetacular... Mas nós já temos muitas viagens!
— E qual é a próxima paragem desta viagem?
— O próximo Europeu! Já temos dois jogos ganhos e, em princípio, estamos muito próximos da qualificação outra vez. Será a oitava sucessiva. E a nossa referência é o sexto lugar. Foi o melhor até agora.
— Mas a fasquia agora está muito mais alta
— Nós gostamos disso. Depois há sempre boas críticas e más críticas. Mas nós gostamos desse bom stress. Esse bom stress é o que nos faz levantar e lutar. Estamos prontos.