A magia de San Marino: «Temos adeptos de todo o Mundo»

INTERNACIONAL21.11.202409:40

No rescaldo da conquista mais significativa da história da pior seleção do ‘ranking’ FIFA, A BOLA falou com o capitão (que tem Lukaku e Cristiano Ronaldo como ídolos) e com um jornalista que a segue há 20 anos, para entender como é que um sonho tão improvável se tornou realidade (e com o apoio de várias nacionalidades)

Quando a pior seleção do Mundo marca um golo, isso por si só já se trata digno de notícia, e se esse golo resultar num empate, ainda mais. Mas se essa seleção consumar uma reviravolta no marcador e tentar sequer marcar por três vezes no mesmo jogo, já parece inimaginável. Só que neste momento, essa palavra não existe no dicionário da seleção de San Marino, que na última jornada da Liga das Nações viu-se a perder em Liechtenstein ao intervalo, por 0-1, mas, graças a uma 2.ª parte sublime, conseguiu obter a primeira vitória fora de casa de sempre, marcando três golos pela primeira vez, e estrear-se também a vencer um encontro com direito a reviravolta no marcador.

O inacreditável não fica por aqui: com esta vitória, San Marino subiu assim à Liga C da Liga das Nações, essencialmente a 3.º divisão do futebol europeu. Então, como é possível que este microestado, último classificado do ranking de seleções da FIFA, no 210.º lugar, tenha sequer podido sonhar com aquele que, certamente, será o maior feito da história da seleção, reconhecida pela UEFA desde 1988?

É preciso realçar que no passado mês de setembro até havia esperanças, em San Marino, de se alcançar aquilo que, para o resto do Mundo, pareceria impossível: «Estávamos muito esperançosos em relação a esta edição da Liga das Nações porque, no passado, já tínhamos enfrentado Gibraltar e o Liechtenstein nesta competição. Tendo em conta as recentes prestações da seleção nacional nas eliminatórias para o Campeonato da Europa (por exemplo, derrota por 1-2 com a Dinamarca) e os jogos amigáveis disputados, todos pensámos que esta poderia ser a nossa oportunidade.»

As palavras são ditas por Elia Gorini, jornalista da San Marino RTV (a emissora estatal do país) e antigo dirigente da Federação de Futebol de San Marino, a A BOLA. De facto, San Marino marcar sequer um golo à Dinamarca, que à altura (em outubro de 2023) era a 18.ª melhor seleção do Mundo segundo a FIFA, já era motivo para celebração. Mas esse encontro representou mesmo um momento decisivo para esta equipa.

«Esse jogo foi um ponto viragem, claramente. A partir daí algo mudou, sobretudo no que toca à marcação de golos. Em todos os jogos estamos mais perto de conseguirmos marcar», explica Nicola Nanni, capitão da seleção de San Marino e autor de um dos golos contra o Lichtenstein, em conversa com A BOLA. E, realmente, esse encontro começou por quebrar uma série de 16 jogos sem marcar e deu início a quatro jogos consecutivos a encontrar o caminho do golo, algo inédito na história desta equipa. Mas para se ter uma noção maior da fase que esta seleção atravessa, veja-se o registo global da mesma, entre todos os jogos oficiais e particulares que já disputou: 213 jogos, três vitórias, 10 empates e 200 derrotas, com 848 (!) golos sofridos e 38 golos marcados – 26% destes golos aconteceram deste esse jogo com a Dinamarca.

O próprio Nanni, que atua no Torres, da 3.ª divisão italiana, também está a trilhar o seu próprio caminho no mundo do futebol: recentemente, marcou na vitória ao Liechtenstein e no também precioso empate com Gibraltar (1-1). Tem, por isso, sido muito requisitado: «Este dias têm sido de loucos para mim, o meu telemóvel não pára de ser bombardeado com chamadas, com mensagens, que vêm da América e de todo o mundo, está a ser incrível.»

Nicola Nanni jogando no Torres (IMAGO)

Apesar de ter apenas três golos internacionais, o avançado já é o segundo melhor marcador de sempre da seleção, atrás dos oito tentos de Andy Selva. «Todos sabemos que o Andy Selva é único, com oito golos marcados, e eu já estou atrás dele, no segundo lugar. Agora quero marcar mais, mas ainda falta. É ótimo ainda só ter 24 anos e ser o capitão num jogo histórico como este contra o Liechtenstein. Portanto claro — espero continuar a marcar mais golos pelo meu país.»

Lutar para contrariar a história

Fazer uma seleção competitiva num país com pouco mais de 30 mil habitantes é uma tarefa hercúlea, até porque haver profissionais nesta equipa é uma raridade. «Eu sou o único jogador profissional da seleção», revela Nanni, «todos os outros são amadores e jogam no campeonato de San Marino». Mesmo assim, essa tarefa é alcançável, o que é comprovado pelas várias mudanças implementadas pela Federação de Futebol de San Marino, começando, antes de mais, pelo lado psicológico da equipa.  

«A Federação ajudou a mudar a mentalidade, a cultura, agora o nosso treinador é o Roberto Cevoli e podemos sentir algo de diferente. Nós já queremos ir para os jogos para jogarmos futebol, taticamente mudámos e nota-se que o ambiente à volta da equipa também», detalha Nanni, ao que Gorini acrescenta: «A Federação de San Marino aposta fortemente no crescimento dos jovens jogadores e hoje começa a ver os resultados, que se devem ao trabalho de todas as pessoas, que o fazem com paixão, algo que na nossa realidade é um dos valores mais importantes.»

Roberto Cevoli, treinador de San Marino (IMAGO)

Dentro de campo, para Nanni, a mentalidade com que aborda cada encontro e que procura reproduzir até provém de uma cara bem conhecida do futebol português e mundial: «Cristiano Ronaldo é uma influência para mim pela pessoa que é, um enorme profissional, vejo-o quase como um herói pelo que fez e pelo que ainda faz hoje em dia, ao conseguir ir à seleção e continuar sempre a marcar.» Já no que toca ao estilo de jogo, curiosamente, Nanni destaca outro avançado: «O meu ídolo é o Romelu Lukaku, muito pela forma como ele joga, que é algo que eu adoro e gosto de seguir.»

Esta época, Nanni até tem sido quase um amuleto da sorte para a equipa que esteja a representar; apesar de ter somente um golo marcado pelo Torres, o jogador ainda só perdeu dois dos 14 jogos em que já alinhou na presente temporada, entre clube e seleção. «Ainda quero marcar alguns golos esta época», detalha o avançado: «Sou ambicioso, como qualquer outro jogador, e gostava de ir mais longe. Depois, o meu sonho é ter experiências fora de casa, noutros países, trata-se de algo que gostava de fazer.»

San Marino e os amigos internacionais

Apesar de deter o título de pior seleção do mundo há anos, de acordo com o ranking da FIFA, um fenómeno interessante ocorreu em torno de San Marino, fruto das redes sociais: começaram a surgir páginas de apoio à seleção, elaboradas por pessoas que seguem não só os jogos da equipa principal, mas também dos escalões de formação, descrevendo com enorme tristeza cada derrota e com uma alegria imensurável cada golo marcado e, agora, cada vitória somada.

«OS RAPAZES FIZERAM O JOGO DAS SUAS VIDAS, GANHÁMOS O DÉRBI, GANHÁMOS PELA PRIMEIRA VEZ NA NOSSA HISTÓRIA FORA DE CASA E SUBIMOS À LIGA C DA LIGA DAS NAÇÕES», escreveu entusiasticamente, em letras maiúsculas, a principal página deste género na rede social X, a San Marino Fútbol, criado por um argentino (e que A BOLA inclusive já entrevistou no passado). Nasceu em 2021 e já ultrapassou os 350 mil seguidores.

O que levou um argentino a criar página de apoio à pior seleção do mundo?

20 novembro 2023, 23:00

O que levou um argentino a criar página de apoio à pior seleção do mundo?

«Jamais esperei uma explosão à volta de uma conta sobre San Marino», diz Ezio Auditore a A BOLA. Achou que podia ser interessante e, após dois anos, já acompanha os diferentes escalões da seleção de San Marino e reuniu uma legião de seguidores que supera em larga escala a população do pequeno país europeu

Outra igualmente popular, por sua vez escrita em inglês, é a San Marino fan account, que se aproxima a passo largos dos 200 mil seguidores e que, no penúltimo jogo de San Marino (no empate a uma bola com Gibraltar), detalhou assim um lance desse encontro: «Nicola Nanni quase marca um golo de calcanhar após um primeiro toque fantástico de Contadini. O que é que eu estou a ver?»

E ainda há mais uma página deste género… baseada na Turquia. E que, ao contrário das outras duas, até goza do estatuto de apoiar a pior seleção do mundo, estatuto esse que deseja manter. «Os nossos medos tronaram-se realidade», comentou a página após a subida de divisão na Liga das Nações. «Emergimos como líderes deste grupo da morte. Os responsáveis devem ser punidos!»

O que é certo é que todas estas contas acompanham religiosamente os jogos da seleção e, entre si, somam 583 mil seguidores no X. A título de curiosidade, na mesma rede social, a conta oficial da Federação de Futebol de San Marino tem pouco mais de cinco mil seguidores.

Acrescenta-se ainda que este inusitado apoio internacional também ocorre nos estádios onde joga a seleção, como nota Nanni: «Já reparei nessas páginas e também já há pessoas que nos seguem nos estádios. No jogo com o Liechtenstein tínhamos fãs do Peru e da Turquia a torcerem por nós. Temos adeptos de todo o Mundo e é ótimo ver que tantas pessoas gostam de acompanhar os nossos jogos.»

No entanto, esta contagiante paixão da equipa também transparece no pequeno país que está rodeado por Itália, pelo que também realça Gorini: «Uma grande multidão acolheu a equipa no seu regresso a San Marino. O nosso país tem muito orgulho e o desporto traz muita satisfação. Estamos muito orgulhosos do que a seleção nacional conseguiu.»

O que poderá acontecer a seguir?

Recapitulando: nos últimos nove jogos, San Marino ganhou dois e empatou outros tantos. Dado o historial desta seleção, seria simples assumir que a mesma atravessa a melhor fase desde que se formou. No entanto, essa noção é recusada tanto por Elia Gorini como por Nicola Nanni.

O jornalista, que também já contribuiu com a Federação local na elaboração de cinco livros sobre a história do futebol em San Marino, explica porquê: «Penso que é difícil comparar diferentes seleções de épocas diferentes. No entanto, posso dizer que a equipa que estamos a ver agora é certamente uma das mais fortes que já tivemos.»

O jogador anui, demarcando-se, desde logo, de fazer este tipo de julgamento. «Se é a melhor equipa não sei… não é correto para mim dizer isso. Este é o nosso melhor momento, de certeza. Antigamente não tínhamos competições como a Liga das Nações, mas claro que este é o melhor momento para a nossa Federação.»

Será então em boa forma que San Marino pode começar a preparar a participação na Liga C, que se afigura como um enorme desafio; os possíveis adversários já confirmados da equipa são a Estónia, a Bielorrússia, o Chipre, as Ilhas Faroé e a Moldávia. Antes disso, no entanto, começará a qualificação para o Mundial 2026, que, para esta turma, mais servirá como preparação para os jogos da próxima Liga das Nações, onde, aí, o objetivo é claro.

«Queremos ser competitivos», dita Nanni: «Temos de aproveitar este momento e melhorarmos se queremos fazer algo de bom. Serão jogos mais difíceis, vamos enfrentar seleções melhores do que as de agora, mas temos de começar já a trabalhar, se queremos ser competitivos na Liga C.»

Olhando mais a o curto prazo, o objetivo de San Marino é, apenas, escrever mais uma linha nos livros de história. «Espero que San Marino consiga sair do último lugar do ranking da FIFA», explicita Gorini. «Seria uma recompensa por todo o trabalho que tem sido feito. Talvez nos esteja a aguardar outra boa surpresa», acrescenta. Resta aguardar então pela atualização da FIFA do seu ranking de seleções, para ver se San Marino ultrapassa, pelo menos, o território britânico de Anguila, a primeira seleção acima de si. Se tal não acontecer, como salientou Nicola Nanni, há que continuar a trabalhar para, mais uma vez, colocar o credo na boca dos adeptos de futebol.

0