Viktor Gyokeres, a encarnação de Frey
Viktor Gyökeres, do Sporting, celebra um golo marcado em jogo pela Liga de futebol. Foto: Maciej Rogowski/Imago.

Viktor Gyokeres, a encarnação de Frey

OPINIÃO08.12.202309:23

Quando alguém sabe para onde vai, até os astros conspiram para remover os obstáculos

Na passada larga de Gyokeres e na abundância do seu futebol é possível ver a encarnação do deus Frey, divindade pagã da antiguidade. Conhecido como Síadoõ, ou seja, deus sueco. Monta um cavalo que salta qualquer obstáculo e usa uma espada mágica que se move sozinha no ar desferindo golpes mortais. Para completar o quadro cénico, Gyokeres, a encarnação de Frey, acompanhado de um javali de ouro chamado Gulinbursti, que conduz um carro como se fosse puxado por cavalos e cujo brilho reluz na noite.

Frey, invocado para favorecer a prosperidade, boas colheitas, fertilidade, alegria e paz. A cada nova terra que visitava, parava tudo para se dar lugar à festa e alegria, na antecipação de que aquela visita era o anúncio da prosperidade. Como Gyokeres, invocado para tornar qualquer relvado em terreno fértil, de boas colheitas, levando prosperidade ao Sporting, a alegria às bancadas e a paz no reino de um leão que assume à 12.ª jornada o trono do campeonato. E para que a imagem seja ainda mais perfeita, falta apenas que Gyokeres deixe de comemorar os golos imitando usar a máscara de Hannibal Lecter, o canibal de Silêncios dos Inocentes interpretado por Anthony Hopkins, e erga o braço como se empunhando a espada mágica de Frey.

É impossível não concordar com o insuspeito - porque imparcial - Roberto Martínez, para quem Gyokeres é o jogador mais «impactante» da Liga. Na terminologia celebrizada por Gabriel Alves, a técnica da força mas também a força da técnica. A vertigem em cada lance, o frémito que se estende às bancadas. Nada é gratuito no avançado sueco, cada toque de bola é sobressalto e prenúncio de final feliz. No futebol de Gyokeres não há entretantos, apenas finalmentes. E sem qualquer esgar de sofrimento. Os lances saem com a naturalidade das convicções, na execução de um projeto de engenharia, pensado antes de executado, e de arquitetura, no aproveitamento do relvado como espaço de equilíbrio, funcionalidade e belo. E quando alguém sabe por onde vai e caminha com a convicção de um desfecho feliz, até os astros conspiram para que todos se afastem à sua passagem… No fundo, a espada de Frey que segue à frente a desbravar caminho.

Porque a ação é também inteligência em movimento, tenho para mim que Gyokeres bebeu do Mímisbrunnr, o poço de Mímir, o mais sábio dos deuses nórdicos. Poço localizado nas raízes da Yggdrasil, a Árvore da Vida, que conduz a todos os lugares e destinos.

Dizer-se que o Sporting está dependente de Gyokeres, como se fosse um mal, é uma contradição nos termos. A dependência, como canta Jorge Palma no tema A Gente Vai Continuar, «é uma besta, que dá cabo do desejo». E Gyokeres fomenta o desejo. O futuro? Pode ser um lugar feliz. Mas pode também ser um lugar distante. E estranho. E surpreendente. E sombrio. O deus Frey também teve de enfrentar o temível Surtur, o gigante de fogo, na Batalha de Ragnarök, a última e decisiva batalha dos deuses contra os seus inimigos com o intuito de travarem uma sequência de fenómenos que ditaria o fim dos mundos. E Frey não poderia usar a espada mágica.

Gyokeres sabe que o futuro é hoje. E que o presente é passado quando acabar de ler esta frase. Poderá deixar marca no futebol português ou apenas imagem de um trovão poderoso mas fugaz. Demasiados e inúteis ses de respostas impossíveis de antecipar e que nos distraem de viver e desfrutar o momento. O momento em que um jogador se assume como o Alfa e o Omega deste desporto que nos enfeitiçou um dia. No ruído das discussões viscerais sobre santos, pecadores, luzes, sombras ou conspirações, usemos uma expressão do teatro para exigirmos que saia de cena quem não é de cena e deixemos o palco para quem nos levou à sala de espetáculo.

Dias felizes vivem-se em Alvalade. No balneário do Sporting dá para ouvir de novo Jorge Palma: «Enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar; enquanto houver ventos e mares a gente não vai parar». Com ou sem a Espada de Frey.

Falar ou não português

Não me lembro de ter alguma vez resolvido um conflito pessoal pela força ou pelo grito. Sempre apostei todas as fichas na diplomacia. Por uma questão de personalidade - logo, ausência completa de mérito, porque sem esforço - e porque a conquista pela força retira todo o sabor ao que conseguimos.

Disto isto, compreendo, mas não subscrevia o protesto dos jornalistas que recusam fazer perguntas em inglês a Roger Schmidt por este ter sido indelicado com um companheiro de profissão. Tentaria que Schmidt entendesse que não esteve bem, que tudo se resolvesse com um pedido de desculpa e, sem pudores, todos seguíramos em frente. Todos dizemos coisas das quais nos arrependemos. Aceito discutir a questão na base dos princípios, não da retaliação, onde ninguém ganha com isso. Mas entendo os meus camaradas jornalistas, repito.

O que me custa a entender é haver adeptos que critiquem os jornalistas por recusarem fazerem perguntas em inglês, como se isso fosse xenófobo. Acreditem em alguém que já viajou Mundo: há países onde perguntas e respostas têm de ser feitas na língua local; noutros admite-se o recurso a tradutores. Só em Portugal vigora um regime de os jornalistas fazerem perguntas na língua mais fácil para o treinador e sem tradutor. O que, vendo bem, até é um elogio: somos mesmo um país aberto e poliglota como poucos no Mundo...

Quando Mourinho chegou a acordo com o Inter, teve três meses para se preparar e falou em bom italiano logo na apresentação... Mais notável ainda: Guardiola fechou acordo com o Bayern uns meses antes de se apresentar, contratou um professor, chegou a Munique e falou logo em... alemão. Não sendo eu fundamentalista, também não custava a Schmidt fazer um esforço por aprender português. Como fez, por exemplo, Roberto Martínez. Por cortesia e para saber o que tem estado a perder por não saborear a bela língua de Camões e Pessoa.

Para quem duvida do VAR

Acontece com o VAR o que é comum em muitas outras coisas: só sentimos a falta quando o não temos. Se houvesse VAR no Portugal-França da Liga das Nações feminina, o golo de Telma Encarnação não teria sido anulado por alegado fora de jogo. Uma simples repetição permitiu concluir ter sido um erro grave. Seria o primeiro golo de Portugal e colocaria as Navegadoras bem colocadas num jogo em que tinham mesmo de vencer. Para os que ainda contestam o VAR, a realidade entra pelos olhos de forma impiedosa: com VAR, a seleção feminina de futebol estava em excelente posição de se manter na Liga A... Com VAR teria havido verdade...