Rio Mavuba ganhou a Ligue 1 (IMAGO)

O único Rio que nasceu no mar: a incrível história de Rio Mavuba

Filho de mãe angolana, o antigo jogador nasceu sem nação, ficou órfão muito novo, mas seguiu as pisadas do pai e conseguiu chegar a um Mundial. E ainda foi campeão pelo Lille e fez frente… a Zlatan Ibrahimovic

Em agosto de 1984, Angola estava em guerra civil. Ricky Mavuba, que esteve com o Zaire no Mundial 1974, e a mulher angolana, Teresa, estavam a fugir do país de barco. Mas não estavam sozinhos.

«O barco em que a minha família embarcou em Angola a meio da noite percorreu em segredo a costa africana e seguiu até à Europa. Nasci sem pátria no decurso desta longa viagem. Foi no barco, enquanto atravessava as águas frias do Atlântico, que o meu pai me deu o nome de Rio»: assim contou Rio Mavuba à ONU a história do seu nascimento.

Essa viagem terminou em Marselha e Rio cresceu em Bordéus. Sem nacionalidade até aos 20 anos: «No meu passaporte apenas dizia 'nascido no mar'.»

A vida de um refugiado órfão

Desde o princípio que nada foi fácil para Rio: ficou sem mãe aos dois anos, cresceu com 11 irmãos e foi educado pelo pai e a sua nova esposa, até que ficou órfão de ambos os pais aos 13 anos. Rio habituou-se a ir ao Restos du Cœur, uma instituição de caridade de distribui refeições a quem mais precisa. «Sem o Restos não teria o mesmo destino, eles ajudaram-me a comer», contou ao Le Parisien em 2018.

Rio Mavubda despontou para o futebol no Bordéus (IMAGO)

O futebol surgiu como um refúgio e uma possibilidade de melhorar a vida. Rio integrou a academia do Bordéus, fez a estreia pela equipa principal na Ligue 1 aos 19 anos, em 2003, e rapidamente conquistou o lugar de titular como o médio mais recuado da equipa. Só precisou de 31 jogos como sénior para se estrear pela seleção de França… sem nacionalidade.

«Eu só tinha um cartão de refugiado político. Era um jogador da seleção sem documentos. Como era um particular contra a Bósnia, pude jogar. Mas depois houve dois jogos oficiais em que não pude participar. Tive de esperar para obter o meu passaporte para poder voltar a jogar.»

Rio Mavuba com Eden Hazard no Lille (IMAGO)

Por ter crescido em França, Rio optou por representar les bleus e declinou a hipótese de o fazer pela República Democrática do Congo, país onde o pai nascera. E o progresso no futebol e cobertura mediática do seu caso ajudaram-no a obter o passaporte francês aos 20 anos.

Carreira de sucesso

Depois de 154 jogos pelo Bordéus, onde chegou à Champions League, esteve meia época no Villarreal e chegou ao Lille em janeiro de 2008, onde teria as maiores alegrias da carreira.

Em 2010/11, foi dos jogadores mais utilizados pelo treinador Rudi Garcia na equipa que ganhou a Ligue 1 e a Taça de França, ao lado de colegas de equipa como Eden Hazard e Gervinho. Na época seguinte, integrou o melhor onze da Ligue 1.

Mavuba conforta Griezmann após a França ser eliminada do Mundial 2014 pela Alemanha (IMAGO)

Chegado a 2014, Mavuba era dos jogadores mais consistentes do futebol francês e foi premiado com uma chamada por parte de Didier Deschamps para o Mundial do Brasil. 40 anos depois do pai estar no maior palco do futebol, Rio seguiu as suas pisadas, apesar de apenas ter somado 25 minutos num jogo contra as Honduras.

O que é ‘zlatanar’?

Verbo fictício associado às ações de Zlatan Ibrahimovic dentro de campo, Zlatanar pode estar ligado sobretudo à atitude provocadora e confiante que o sueco sempre demonstrou, à qual depois pode estar associada alguma ação física. No entanto, Rio Mavuba provou que é possível que este verbo se aplique a ações contra o próprio Zlatan.

«Foi durante um jogo entre o PSG e o Lille. Marquei um golo, o que quase nunca me acontece, mas as pessoas só se lembram da minha discussão com o Zlatan. Porque me atrevi a ‘zlatanar’ o Zlatan! Ele empurrou-me, exaltámo-nos e eu pus-lhe a mão na garganta. Foi então que ele tentou fazer com que eu fosse expulso, caindo sozinho. Quando o vi cair, pensei: "Uau, sou forte!” Eu não ia ficar assustado. Depois voltámos a encontrar-nos noutros jogos e ele olhava para mim com respeito», contou também aole Parisien.

Rio nem se assustou com a diferença superior a 20 centímetros entre a altura de ambos. E para alguém que ultrapassara tanto na vida, não seria qualquer jogador que o pudesse intimidar em campo.

Racismo marca fim de carreira

Em 2017, Rio saiu do Lille e decidiu experimentar o futebol checo, assinado pelo Sparta de Praga. Mas a passagem pelo último clube que representou a nível profissional ficou marcado por um episódio lamentável.

«Depois de uma vitória, é normal os jogadores irem bater palmas aos adeptos. Depois de uma vitória, vários adeptos baixaram as mãos quando eu cheguei. Só o fizeram com os jogadores negros e com um companheiro de equipa israelita. Isso foi a gota de água para mim. Ver isso em 2018... era como se eu não fosse mais humano», contou também ao Le Parisien.

Rio Mavuba só fez 12 jogos pelo Sparta de Praga (IMAGO)

«É difícil colocarmo-nos na cabeça destas pessoas. A certa altura, quase me deu a volta ao estômago estar a defender as cores de um clube que tinha adeptos assim. Há idiotas em todo o lado, mas nunca passei por isso em França.»

Infelizmente, o desporto ainda é marcado por situações destas. Por outro lado, o futebol está cheio de exemplos de jogadores que só começaram a carreira com um sonho e talento e chegaram aos patamares mais altos do desporto-rei. Mavuba é claramente um deles. Um médio defensivo lutador e que impunha o seu jogo, tal como fez desde tenra idade para, primeiro, sobreviver e depois singrar ao mais alto nível.

E tudo começou com um parto no mar.