João Pinheiro, árbitro do Santa Clara-Sporting dos oitavos de final da Taça de Portugal, foi muito criticado - Foto: Imago
João Pinheiro, árbitro do Santa Clara-Sporting dos oitavos de final da Taça de Portugal, foi muito criticado - Foto: Imago

O Apito Dourado e os E-Mails não foram aqui

'Verde à Vista' é o espaço de opinião semanal de Carmen Garcia, enfermeira, sportinguista e autora do blogue 'Mãe Imperfeita'

Havia um elefante na sala de estar da família Ferreira. Chegou um dia, sem ser convidado, e ali se instalou. De cada vez que se mexia as paredes estremeciam. E quando usava a tromba partia sempre alguma coisa. Mas todos lá em casa fingiam que o elefante não existia.

A mãe tinha de passar por cima da tromba do elefante para ir para a cozinha, o filho ficava espalmado no sofá quando queria ver um bocadinho de televisão e o pai respondia aos vizinhos que os barulhos estranhos que ouviam eram um problema de canalização.

Havia feridas feitas pelos cacos que o elefante provocava e nódoas negras dos encontrões, mas nada era tão mau como o silêncio de vozes que se instalara. De alguma forma, numa espécie de compromisso tácito, os três elementos da família assumiram que dizer que havia um elefante no meio da sala era pior do que, de facto, tê-lo ali.

Mas um dia a avó apareceu lá em casa sem avisar e, chocada, exclamou: «Está aqui um elefante!» E nesse momento foi como se um feitiço se tivesse quebrado. A mãe gritou que não aguentava mais o animal, o filho chorou porque tinha andado muito tempo a engolir o medo e o pai confessou o susto. Nessa tarde, chamaram uma equipa para demolir a parede da sala e o elefante, finalmente, foi à sua vida.

E eu, que sou Garcia e não Ferreira, sou cópia desta avó e recuso-me a conviver com elefantes na sala. Dito isto, e da forma mais clara possível, quero deixar já registado que o penálti marcado a favor do Sporting contra o Santa Clara não foi penálti nem aqui nem na China e que mal estaremos quando se decidir que aquele tipo de contacto é critério para o castigo máximo. É que nesse dia, garanto-vos, vamos conseguir arranjar, pelo menos, um penálti em cada pontapé de canto — a não ser que algum iluminado se lembre que os jogadores devem passar a usar as mãos amarradas atrás das costas.

O que aconteceu no jogo com o Santa Clara foi mau e foi-o por vários motivos. E se o primeiro deles é claramente a decisão final, o tempo que se perdeu até chegar a essa decisão é, como dizia a minha avó, «pouco melhor, muito obrigada». Mais de dez minutos de jogo parado enquanto se analisa uma jogada é qualquer coisa muito próxima de uma aberração. E se isto se tornar prática comum, então desliguem-lhe as máquinas que o nosso futebol está morto.

Vamos ver, uma paragem do tamanho da que ocorreu neste jogo não é apenas má para o espetáculo porque, na verdade, os adeptos aborrecidos ou as grelhas de televisão que se ajustam são o menor dos males. O problema é que a meio de exercício intenso, uma paragem desta dimensão tem consequências. Porque bastam dez minutos de inatividade para a temperatura muscular dos jogadores começar a descer de forma significativa e esta descida traz consequências como a redução da elasticidade, da velocidade de contração e da capacidade de produzir força. Portanto, quando o jogo retoma, os jogadores estão com menor capacidade de explosão, com as pernas mais pesadas e com uma probabilidade aumentada de sofrer lesões — músculos frios são mais suscetíveis a distensões e ruturas. E como nem só de músculos vive o homem, existem outras alterações, nomeadamente cardiovasculares e neuromotoras, que condicionam a prestação dos jogadores após interrupções como aquela a que assistimos no jogo em questão.

Dito isto, como sportinguista, lamento o que aconteceu e sei, como sabemos todos, que quem perde com episódios destes é o futebol. Já o escrevi no Twitter e volto a escrevê-lo aqui: somos sportinguistas, mas não temos de ser cegos e, por isso, é honesto assumirmos que aquele penálti e aquela interrupção XXL não lembram ao diabo e que o Santa Clara, que contra o Sporting joga sempre a dar tudo e mais um pouco, deveria ter passado a eliminatória.

Mas não foi isso que aconteceu e as vozes indignadas logo se levantaram. E se até certo ponto essa indignação é absolutamente legítima, há depois uma linha que marca o ridículo e que foi claramente ultrapassada nos últimos dias.

É que é quase risível ouvir adeptos de clubes que tiveram nas suas fileiras casos como o Apito Dourado e o caso dos E-Mails virem agora dizer que este é o maior escândalo de sempre da arbitragem portuguesa. Lamento informar, lamento mesmo, mas não, isto não é um escândalo ainda que, e aí até posso ceder, possa ter sido um episódio com contornos escandalosos. Mas escândalo? Escândalo foi a fruta de que todos nos lembramos e as ofertas de bilhetes e outras regalias que, essas sim, procuravam condicionar o desempenho dos árbitros e criar uma teia capaz de minar o sistema de fio a pavio.

E sim, eu tenho memória. E a minha memória lembra-se de Jonas e de uns certos e determinados penáltis que acabaram num campeonato vencido pelo Benfica com uma diferença de apenas dois pontos para o Sporting. Campeonato esse que, só para mostrar como a música é diferente para alguns quando são eles os beneficiados, os adeptos encarnados celebraram com cachecóis a dizer colinho.

Vou dizer outra vez: não era penálti, foi um erro, o Santa Clara fez mais do que o Sporting para passar a eliminatória. Mas aguentem lá aí o rasgar de vestes e os gritos de varandistão. Isso e os comunicados para os quais, muito honestamente, começa a não existir paciência.

Há dias li o comentário de um sportinguista a uma publicação sobre a arbitragem de João Pinheiro e não consegui evitar um sorriso. Escrevia ele que o Sporting ser beneficiado era uma espécie de reparação histórica e que ainda temos muito crédito antes de igualar aquilo que nos roubaram. E não concordando minimamente com esta forma de ver as coisas, começo a ter vontade de dizer o mesmo quando vejo o drama e o horror criados à volta deste episódio e que começa, cada vez mais, a roçar a paranóia.

Enfim, gostava de acabar esta crónica num registo que, ao contrário destes tristes espetáculos e polémicas, nos recorde a razão pela qual ainda há beleza neste jogo. E esse episódio aconteceu também no campo do Santa Clara, quando os jogadores do Arouca se dirigiram à bancada para cumprimentar o único adepto arouquense que se deslocou a São Miguel para apoiar a equipa. No meio de tanta coisa feia dos últimos dias, ver aquele adepto sozinho ser acarinhado pela equipa fez-me perceber que no futebol, afinal, também pode haver Natal.

No pódio
Já aqui falei sobre a equipa de andebol do Sporting, bicampeã nacional, e é absolutamente impossível não voltar a fazê-lo. Dezassete vitórias em dezassete jornadas do campeonato, mais uma vitória clara como a água frente ao Benfica e a certeza de que, ao dia de hoje, o Sporting está a fazer o caminho para se tornar num gigante europeu do andebol. Muitos parabéns a toda a equipa que, com qualidade e ambição, tem elevado o nome do andebol português e honrado o leão que carrega ao peito. São um orgulho para todos os sportinguistas.
Na bancada
A publicação do SLB nas redes sociais relativa ao jogo da sua equipa feminina contra o Sporting foi, na minha opinião, particularmente infeliz. Não pelo motivo do comunicado em si, mas pela forma como foi redigido. Ora, dizia a publicação, «dois pontos perdidos pelo SLB devido a erros de arbitragem. Uma vez mais. Até no feminino!». E este «até no feminino» deu-me vontade de bater com a cabeça na parede porque é como quem diz vejam bem que até aqui, onde não interessa grande coisa, somos roubados. E isto é tão pouco respeitador da equipa que mais alegrias tem dado aos adeptos encarnados ultimamente que só pode merecer reprovação. Acredito que a intenção de quem escreveu não tenha sido má, mas aquelas palavras tresandam fortemente a depreciação. E o futebol feminino do Benfica merece bem melhor do que isso.