Vão longe — e ao mesmo tempo perto — os tempos do 'Football Manager' no computador de cada um. FOTO A BOLA
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Inteligência artificial, scouting e media no futebol

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O futebol moderno já não se resume apenas ao treino, à intuição e à preparação física. Hoje, integra matemática avançada, big data e algoritmos sofisticados. Embora esta transformação seja quase invisível para o espectador comum, uma verdadeira revolução tecnológica está a modificar, nos bastidores, a forma como os clubes decidem jogos, avaliam jogadores e enfrentam o mercado de transferências.

Que dados analisa a IA no futebol?

Os clubes de topo recolhem milhões de pontos de dados ao longo de uma época: frequência de toques, percentagem de acerto de passe, distância percorrida, posicionamento em campo, interação com colegas. Esta informação é captada por sensores GPS, sistemas de vídeo, drones e tecnologia embutida nos equipamentos.

Porém, os números não são suficientes sem interpretação. Aí entra a Inteligência Artificial, combinando softwares de machine learning treinados com bases de dados históricos. Estes algoritmos identificam padrões, preveem acontecimentos (ex.º: probabilidades de golo a partir de determinada zona, sinais de fadiga, compatibilidade tática com um determinado treinador) e fornecem previsões aplicáveis à competição real.

Scouting: a revolução na prospeção global de talento

Os decisores deixaram de se guiar apenas pelo instinto, escolhendo plantéis, definindo táticas e mesmo contratando jogadores com base em relatórios analíticos gerados por IA.

Tradicionalmente, o scouting implicava enviar olheiros a todos os cantos do mundo. Hoje, algoritmos analisam milhares de atletas em tempo real — mesmo em ligas amadoras ou secundárias na Ásia ou América Latina — cruzando desempenho real com o perfil ideal de cada posição e filosofia de jogo.

O Brentford FC é um caso de estudo. Usando a sua plataforma Smartodds, analisaram mais de 85.000 jogadores, descobrindo Ivan Toney nas divisões inferiores inglesas por 5 milhões de libras. Após a sua valorização e transferência, Toney rendeu ao clube mais de 40 milhões — um retorno de oito vezes o investimento inicial. Esta abordagem permitiu ao Brentford competir na Premier League, apesar de ter um orçamento muito inferior aos rivais.

Implementação prática da IA

Num jogo típico, recolhem-se milhares de parâmetros:

  • Coordenadas dos jogadores a cada segundo;

  • Velocidade, aceleração e padrões de movimento;

  • Taxa de sucesso de passes sob pressão;

  • Ações/decisões no último terço do campo;

  • Indicadores fisiológicos: frequência cardíaca, fadiga muscular, níveis de oxigénio;

  • Os dados são captados por chips GPS, câmaras em redor dos estádios, drones e sensores wearables integrados na roupa dos atletas.

Processamento avançado

Plataformas como Wyscout, STATSports, SkillCorner ou Zone7 trabalham em tempo real, atualizando a informação constantemente. Redes neurais artificiais separam a informação relevante do chamado ruído de fundo, revelando padrões e tendências comportamentais únicas.

Casos concretos

O Liverpool FC, em parceria com a Google DeepMind, criou o TacticAI: um sistema de IA para afinar rotinas de canto, prevendo o desfecho dos lances e sugerindo posicionamentos otimizados. Em testes, os especialistas humanos preferiram as recomendações do TacticAI em 90% das situações analisadas.

O Sevilla FC implementou o Scout Advisor sobre a plataforma WatsonX da IBM, analisando mais de 200 mil relatórios de scouting com tecnologia de processamento de linguagem natural, reduzindo drasticamente o tempo e os custos na triagem de jogadores.

Treino, preparação e prevenção de lesões

A IA fornece aos treinadores análises de adversários muito mais detalhadas, estudando dinâmicas individuais e padrões de movimento em diferentes fases do jogo.

Exemplo: um extremo que, sistematicamente, entra em zonas interiores a partir do minuto 70, permitindo ajustes defensivos mais eficazes.

Com monitorização contínua de parâmetros fisiológicos (frequência cardíaca, velocidade de recuperação, fadiga muscular), a IA recomenda cargas de treino individualizadas, períodos ótimos de descanso e alerta para sinais precoces de risco de lesão, permitindo reduzir baixas clínicas.

A IA permite simular cenários financeiros e desportivos — desde o impacto imediato de uma contratação ao potencial de valorização futura. Isso reduz o risco de flops milionários e maximiza o retorno dos investimentos dos clubes.

Novos papéis profissionais

O scouting passou a ser muito mais quantitativo. O papel do olheiro tradicional” evoluiu: agora é indispensável interpretar dados, perceber modelos estatísticos e articular a experiência empírica com provas objetivas. Os analistas são hoje parte do núcleo duro técnico, influenciando diretamente as opções em campo.

Novas funções surgiram, como:

  • Cientistas de Dados: modelam e prevêem cenários através de big data;

  • Treinadores de Performance com IA: adaptam as recomendações dos algoritmos ao contexto de cada atleta;

  • Analistas de Dados Tácticos: investigam padrões de interação posicional e dinâmicas coletivas.

Desafios e limites éticos

Tecnologia — A IA reduz erros, mas, se aplicada de forma acrítica, pode apagar fatores emocionais, liderança e espírito de equipa — elementos não quantificáveis e decisivos no futebol.

Privacidade — A recolha constante de dados levanta questões éticas sobre os limites da vida privada dos jogadores. Por isso, os clubes e as organizações estão a criar códigos de conduta e diretrizes éticas para este novo paradigma.

AI, Media e Relação com os Adeptos

Cobertura — A análise avançada chega agora ao grande público. No estrangeiro, ligações como xG (expected goals), análises interativas em direto, gráficos 3D e predictions automáticas já fazem parte da transmissão. Plataformas como Opta e Understat estão a transformar o espectador passivo num analista amador, elevando o nível das discussões e da exigência dos adeptos.

Personalização — A IA permite criar resumos de jogos à medida de cada espectador, com foco num jogador, tática ou lance, individualizando a experiência e valorizando o produto audiovisual dos clubes e dos media.

Futuro e inovação

Realidade Virtual e Feedback Imersivo — A integração da IA com a realidade virtual permitirá aos jogadores reviver situações de jogo virtualmente e experimentar decisões alternativas, com feedback imediato. Esta aprendizagem ativa revoluciona o treino tático.

Sistemas — No futuro, a IA adaptará autonomamente os seus modelos de análise consoante a evolução do próprio jogo, redefinindo métricas e descobrindo novas formas de interpretar performance.

Conclusão

O futebol já não se joga apenas dentro das quatro linhas ou pelo dom do improviso. O sucesso assenta, cada vez mais, na forma como os clubes usam os dados a seu favor. A IA não marca golos, mas é já o jogador invisível mais valioso da alta competição.

O futuro do futebol pertence à sintonia entre inteligência humana e inteligência artificial — com os dados ao serviço do talento, sem nunca esquecer o elemento humano. Esta revolução, se bem gerida, fará do futebol português um exemplo global, dentro e fora de campo.