Desabafo de enfermeira colocou Lage e Anselmi em 2.ª plano
Há semanas em que sou eu quem escolhe o tema desta crónica semanal. Outras semanas é o tema que me escolhe a mim num comovente ato de fé de que lhe possa fazer justiça. Esta semana fui escolhido.
Eu até já tinha começado a escrever sobre as declarações de Bruno Lage após o empate com o Boca Juniors. Que percebo o que o treinador disse quando colocou a tónica na reação da equipa a perder por 2-0, elogiando os jogadores, mas num clube com a grandeza do Benfica pensar grande é saber que a tónica está em fazer as coisas bens feitas por forma a que os jogadores façam as coisas de tal maneira que até parece que nem têm de sofrer. A competência tem essa capacidade de criar a ilusão de ausência de esforço.
Na segunda parte do texto, eu até estava a escrever que a um treinador de um clube com a dimensão do FC Porto – de longe o mais fiável e bem sucedido clube português das últimas décadas na Europa - não fica bem enaltecer a forma como a equipa anulou os pontos fortes do Palmeiras. Prefiro um discurso que enalteça, caso haja razões para isso – e neste jogo não aconteceu – que enalteça a capacidade de ferir o adversário e de o levar a reagir, nunca a tomar a iniciativa. E também estava a escrever sobre Anselmi ter dito que este jogo foi um ponto de viragem, um cartão de visita para o que vem aí... Acredito que os adeptos do FC Porto não ficaram particularmente impressionados com este cartão de visita. Pelo menos os que já viram outros FC Porto jogar...
Mas como o tema é que me escolheu a mim, já em hora tardia por estar a escrever a crónica da semana, tive de parar num texto de uma enfermeira nas redes sociais. «Hoje, a dor veio cedo. Segurei a mão de uma mãe que perdeu o seu mundo em forma de filho. E penteei os cabelos finos de uma senhora à beira da partida — sorriu, e murmurou: “Assim morro mais bonita.” Mais bonita partiu. No turno não se chora. Chorei no silêncio do corredor no final. Durante o dia ninguém pergunta como estou. Um “olá” me bastava.»
Não digo que as pessoas para quem a enfermeira é invisível a ponto de não repararem que está em sofrimento sejam más pessoas. Que sejam insensíveis. Muitas vezes o que nos torna ilhas é concentrarmo-nos em demasia nas nossas próprias dores, nos nossos contratempos de um tempo que não tem por hábito dar-nos tempo para ter tempo. Para reparar nessas coisas. E mesmo um bom dia que nos sai da boca é um gatilho para um vazio de quem não espera por ouvir a resposta e segue o seu caminho.
É muito mais fácil do que pensamos fazer a diferença na vida de outra pessoa. Perguntar como está e esperar pela resposta. Trocar até um «como posso ajudar?» por um «posso chorar contigo?». Muitas vezes essa é a melhor ajuda. Chama-se empatia. Apenas precisamos de alguém com quem possamos assumir que sofremos e somos frágeis. Na certeza que de uma ilha passamos a ser arquipélago, ligado não por mar mas por emoções que, não nos roubando a individualidade, nos dão um sentimento de pertença. Seja doméstica, operário fabril, contabilista, enfermeira ou até jogador de futebol. Que também sofre e começa a assumir as fragilidades que são, afinal humanas.
Também eu atravesso uma fase em que talvez me consuma mais com as minhas dores do que as de quem me rodeia. Seguindo o pedido da enfermeira, só posso dizer «olá, miúda». Sim, sabes que falo de ti.