Antes de vermos o futebol, ouvimos o futebol
Com o jogo do Sporting contra o Bayern a acontecer durante a semana e num horário bastante mais cedo do que o habitual, a preocupação instalou-se na cabeça dos meus filhos. «E agora, onde é que vamos ver o jogo?», perguntaram-me muito aflitos, praticamente como se estivéssemos perante uma verdadeira tragédia.
Imagino que, naquelas cabecinhas, perderem uns minutos do jogo e correrem o risco de não saberem, em tempo real, que tinha existido um pontapé de canto ou que o árbitro tinha mostrado um cartão amarelo fosse o equivalente à queda de Troia: choro, gritos e a certeza inabalável de que o mundo, como o conhecem, estava prestes a desabar.
Vendo a aflição, depressa os tranquilizei e prometi que, nesse dia, mal as aulas acabassem, estaria à porta da escola para os trazer para casa. Não existindo nada de absolutamente inesperado o mais certo seria verem o jogo em casa, já de banho tomado e equipados a rigor. Mas, só para os deixar completamente tranquilos, acrescentei que, mesmo que não conseguíssemos chegar a horas a casa, podíamos sempre ouvir o jogo no carro. E foi aí que o mais novo olhou para mim desconfiado e perguntou «como assim, ouvir?»
De repente, fez-se uma espécie de clique na minha cabeça. Seria realmente possível que os meus filhos nunca tivessem ouvido um relato na rádio? E quando lhes perguntei, a resposta deu-me vontade de aplicar um castigo a mim própria. É que, aparentemente, os únicos relatos que os meus filhos reconheciam como tal são aqueles que aparecem nos vídeos de Youtube sobre futebol que eles passam a vida a assistir. E eu, que tenho tantas memórias tão boas de tardes de domingo acompanhada pela telefonia, prometi a mim mesma corrigir essa falha com brevidade.
Lembro-me, da maneira que só nos lembramos das coisas doces, de estar com a minha mãe na cozinha, a cheirar a bolo de iogurte acabado de fazer, e de ela ter a telefonia ligada na Rádio Granada para ouvir o relato do jogo do Estrela, feito por um relatador aqui da terra chamado Teófilo de Sousa. Aos domingos à tarde, tal como o meu avô já fazia, a minha mãe ouvia religiosamente aquele relato não sei se por gostar muito do clube da terra se por ser uma maneira de sentir mais perto o seu já falecido pai.
Sabem, trabalhei num lar onde havia um residente tão sportinguista que, muitas vezes, adoecia com o clube. A mulher, que lá vivia com ele, perdia frequentemente a paciência quando o via muito pálido agarrado ao peito depois de uma derrota ou de uma emoção forte durante um jogo e, invariavelmente, lançava pragas à telefonia. Mas eu, tal como ele, adorava aquela caixinha preta. Porque em dias de jogo, se eu estivesse de turno, ele agarrava nela e vinha atrás de mim para onde eu fosse permitindo-me ouvir os relatos e festejar os golos com companhia.
— Sabe, enfermeira, às vezes penso onde é que estes homens irão ao ar — dizia-me ele depois daqueles gritos de goooooolllllooooooooo que tiram o fôlego a qualquer um. — Desse eu um grito daqueles e caía para trás três vezes morto.
Mas sabem o mais curioso? É que nem a ouvir os relatos do Estrela na telefonia da minha mãe, nem a ouvir os do Sporting na telefonia do Manel Ai-Ai (sim, era mesmo este o nome dele) eu sentia falta da imagem. Aliás, é na imagem, na transmissão televisiva, que sinto falta da emoção que a rádio entrega durante um jogo.
Já várias vezes me disseram que um jogo que se ouve sem se ver tem sempre mais golos. E isto, sabe quem costuma ouvir os jogos na rádio, é absolutamente verdade. Porque na descrição entusiástica da jogada, no tom rápido, na emoção conferida, às tantas damos por nós e já estamos a ver o golo na nossa cabeça. E sim, isto acontece mesmo quando o remate sai ao lado ou quando o guarda-redes faz uma grande defesa.
Na televisão, com a imagem, o futebol, queiramos ou não, é mais frio. Porque é-nos tudo tão entregue que acabamos por ser um bocadinho mais passivos, menos fáceis de surpreender. E, e neste ponto não me contrariem, enquanto na transmissão televisiva os narradores são técnicos, na de rádio são artistas. Porque é preciso ter muita, mesmo muita arte, para transformar as palavras em imagens e permitir que, alavancados na nossa voz, outros corações palpitem.
E depois há, claro, a questão da solidão que a rádio engana e que a televisão agrava. A rádio é companhia feita de palavras, de ritmo e de respiração. Um jogo, ouvido na rádio, é um jogo metade jogado e metade imaginado. E saber que os meus filhos, que gostam tanto de futebol, nunca tiveram a oportunidade de experimentar o exagero que a rádio entrega faz-me sentir uma mãe assim a atirar para o fraquinho. Quem de nós conhece a experiência do relato via rádio sabe o quão espectacular é a diferença de emoção no mesmo lance que na rádio nos arrepia os pelos do braço e que na televisão não nos faz sequer levantar completamente os olhos do prato.
Sabem qual é a melhor forma de sintetizar o encanto de ouvir o relato de um jogo na rádio? É que não nos entrega imagem, mas entrega-nos magia. E é por isso que todos os relatadores desportivos são uma espécie de mágico, um pintor sonoro que desenha o jogo na cabeça de quem ouve.
E dê lá por onde der, o próximo passo do caminho aqui de casa é eu arranjar um rádio pequenino, que gostava mesmo que fosse uma telefonia, e meter esta gente pequenina a ouvir relatos. Porque o futebol, em casa de cada um, antes de ser visto já era ouvido. E é hora de os meus filhos perceberem isso.