Flor Bonsegundo afirmou, no entanto, que para ela foi fácil seguir esse caminho, em comparação com outros exemplos

«Vivemos discriminação, mas o futebol feminino cresceu e não tem limites»

Flor Bonsegundo chegou ao Sporting no verão, mas traz na bagagem uma carreira feita de golos, luta e identidade. Melhor marcadora de sempre da seleção argentina, a média revisita uma carreira construída com trabalho, paixão e resiliência

É uma das caras novas do Sporting, mas chega às leoas com estatuto e história feita no futebol argentino. Flor Bonsegundo construiu um percurso marcado pela paixão precoce pela bola, pela resiliência perante as dificuldades e por uma voz ativa na luta por melhores condições no futebol feminino. Melhor marcadora de sempre da seleção argentina, a média recorda, nesta entrevista a A BOLA, o início da ligação ao desporto-rei, o caminho até à Europa e as reivindicações que ajudaram a mudar o panorama no seu país.

Como e quando é que começou essa ligação ao futebol?

Comecei com cinco ou seis anos, a jogar em casa com o meu irmão mais velho e com os meus amigos no bairro. Era a única menina da vila que jogava à bola, com todos os rapazes. Já levo muito tempo com a bola nos pés. Para mim o futebol é paixão e isso nota-se no meu modo de jogar.  

Sempre sonhou chegar a profissional?  

Sempre. Sonhava chegar à seleção, jogar mundiais, jogar em equipas competitivas onde pudesse ganhar títulos. Não tenho nada a pedir ao futebol e à vida, deram-me imenso.  

Enfrentou algumas dificuldades no início da carreira? 

Acho que todas as mulheres passaram por momentos muito duros na infância, na hora de escolherem jogar futebol. Todas vivemos discriminação, mas isso também tornou-nos muito fortes. A mulher já deixou um legado importante no futebol, estamos em constante crescimento e não temos limite. Para mim, foi fácil escolher o futebol pela família que tenho, pelo lugar onde cresci e pelos valores que me incutiram desde pequena, de nunca desistir. Foi mais fácil para mim do que para outras colegas que se renderam e deixaram de jogar por tudo o que tiveram de enfrentar.  

Aos 15 anos, teve que deixar de jogar, porque não havia liga feminina na sua região. Como é que voltou ao futebol?  

Sim. Comecei a jogar com meninos e chegou um momento, aos 15 anos, em que já não podia jogar mais com eles. Estive dois anos sem jogar e, entretanto, criaram um clube de futebol feminino na minha vila. Foi aí que voltei a jogar futebol até que, aos 17 anos, fui observada por olheiros da seleção e pude continuar o meu percurso.

Bonsegundo chegou ao Sporting no passado verão. Foto: Miguel Nunes

Quando jogava na Argentina, também trabalhava ao mesmo tempo. Como foi essa experiência?  

Joguei uma época no Huracán e depois cinco épocas no UAI Urquiza, onde jogava e trabalhava. Fazia a minha vida assim: ia trabalhar de manhã, das 7h às 14h, e depois ia treinar. Era algo normal para mim e para todas as minhas colegas, porque era muito difícil viver do futebol. Hoje, ainda custa viver do futebol na Argentina, embora tenha evoluído muito. Nessa altura, para mim era tudo novo, mas era feliz. Trabalhava a vender roupa na loja do clube e fazia limpezas na universidade à qual o clube pertence. Levantava-me muito cedo e voltava a casa muito tarde...

Aos 24 anos vai para Espanha, sempre foi um objetivo jogar na Europa?

Sim. A oportunidade chegou um bocadinho tarde, podia ter ido um pouco antes, mas não o fiz por medo. Mas sim, o objetivo era chegar à Europa. Ir para o Huelva foi muito importante, porque foi um clube que me permitiu jogar muito e serviu de montra. Estou muito agradecida ao Huelva por tudo o que vivi lá e por tudo o que me deu para continuar a crescer. Foi um passo muito importante. 

Entretanto, começou a jogar na seleção e, atualmente, é a melhor marcadora da história da seleção argentina. Qual é a sensação de jogar pelo seu país e de deter este recorde?  

É incrível estar há tanto tempo na seleção. Houve momentos em que não fiz parte das convocatórias, por várias situações que aconteceram e também por uma lesão que tive. Mas a seleção é algo maravilhoso, é o que qualquer jogadora deseja. É incrível representar a albiceleste em mundiais, em Copas América. Para mim, é família, é paixão e representa tudo o que é um futebolista argentino. Ser a melhor marcadora é algo único, que não planeei.

Quando começou a perceber que era possível chegar ao recorde?  

Soube há pouco tempo que isto podia acontecer, não fazia ideia. Na Copa América, há uns meses, comentaram-me algo, mas eu nem sabia bem o que era. Agora, quando começou a Liga das Nações, informaram-me melhor e disseram-me que estava a quatro golos do recorde. Depois, começaram os jogos, chegaram os golos e, à medida que me aproximava, toda a gente dizia: ‘Olha que estás a um golo.’ Ver as minhas colegas e as pessoas felizes por mim e pelo que isso significa traz um pouco de pressão e nervosismo, mas é uma felicidade enorme conseguir esse feito. Que venham muitos mais. 

Bonsegundo regista 53 partidas e 20 golos com a seleção argentina. Foto: AFA

Foi o melhor momento da tua carreira até agora?  

Tenho muitos momentos bons na minha carreira, mas sim, há um antes e um depois desse momento. No fundo, deixa marca na seleção e na minha carreira, e isso é muito importante.  

Em 2018, fez um apelo público para que as jogadoras argentinas fossem mais ouvidas e criticou as condições e a falta de visibilidade do futebol feminino no país. Daí para cá, como tem sido a evolução do futebol feminino na Argentina?  

Nessa altura, eu era capitã da seleção e fizemos uma reinvindicação. A partir daí, começámos a ter mais visibilidade, as pessoas ficaram a saber que existia futebol feminino e que havia uma seleção a competir. Depois dessa Copa América, classificámo-nos para o Mundial, 12 anos depois. Foi muito importante o que se conseguiu e, desde aí, começou a haver uma aposta da Federação e dos clubes no futebol feminino. Nestes últimos dez anos, a Argentina deu um salto muito importante em qualidade, com muitas jovens a virem jogar para a Europa ou para os Estados Unidos, algo que antes não acontecia. Há um antes e um depois no futebol feminino argentino e ser parte disso é um orgulho enorme.  

Bonsegundo conta com passagens por Hurácan, Urquiza, Huelva, Valência, Madrid CFF e Sporting. Foto: Miguel Nunes

E no geral, como vê a evolução do futebol feminino nos últimos anos?  

Tem tido um crescimento abismal, não só na Europa. É incrível, o futebol feminino não tem teto. Já não é algo que não dá lucro, pelo contrário, gera muito. Antes dizia-se que era uma perda, hoje dá muito, sustenta famílias e oferece uma via que antes não existia. Há visibilidade e dá espaço e poder à mulher, que antes não tinha. Somos conscientes e parte dessa luta pelo futebol feminino e pelo poder que a mulher sempre quis e procurou.  

Veja a entrevista na íntegra: