Cumprimento entre as duas maiores lendas de Benfica e Ajax: Eusébio e Johann Cruyff - Foto: IMAGO
Cumprimento entre as duas maiores lendas de Benfica e Ajax: Eusébio e Johann Cruyff - Foto: IMAGO

Sair do zero contra um Ajax que é uma ferida aberta: «Se Farioli ainda aqui estivesse...»

Águia pressionadíssima para (finalmente) pontuar e ainda sonhar com o acesso ao 'play-off'. Em Amesterdão mora uma equipa frágil e em profunda crise desportiva e estrutural. Os pontos fortes e as fraquezas que Mourinho pode explorar

AMESTERDÃO — Falar de Ajax e Benfica no contexto Liga dos Campeões é reviver o futebol de antigamente, quando os negócios de centenas de milhões e as discussões sobre direitos de transmissões televisivas e sistemas de videoarbitragem ainda não tinham invadido o desporto-rei.

A história dos confrontos entre os godenzonen – filhos dos Deuses, em homenagem ao herói grego Ajax que deu nome ao clube, dentro da vasta relação de clubes neerlandeses com a mitologia helénica – e as águias começou em 1968/69, numa eliminatória a três mãos.

Algo impensável nos dias de hoje, tantas são as queixas sobre o sobrecarregar do calendário, mas que aconteceu nos quartos de final da Taça dos Clubes Campeões europeus nessa época. 

Depois de o Benfica vencer por 3-1 em Amesterdão, o Ajax foi à Luz aplicar o mesmo resultado e, sem prolongamento e penáltis, a decisão teve lugar em campo neutro, em Paris, dias depois. Os neerlandeses alcançaram triunfo largo mas apenas no prolongamento, 3-0, após nulo durante os 90 minutos. Esse jogo serviu como uma espécie de passagem de testemunho no primeiro plano do futebol europeu do Benfica, dominador na década de 60 e vencedor do troféu em 1960/61 e 1961/62, para o Ajax, tricampeão europeu nas edições de 1970/71, 1971/72 (aqui eliminando as águias nas meias-finais, agregado de 1-0) e 1972/73 às costas de Johann Cruyff, um dos melhores jogadores da história do futebol.

Momento da 'terceira mão' entre Ajax e Benfica, em Paris, em março de 1969 - Foto: IMAGO

Os tempos, hoje, são outros, muito diferentes, e basta olhar para a classificação da Liga dos Campeões para o atestar. Hoje à noite, na Johann Cruyff Arena, estarão frente a frente os dois últimos da tabela e a única certeza é que alguém sairá do zero: tanto Ajax como Benfica ainda não conseguiram pontuar, fruto das quatro derrotas nas jornadas anteriores, e a partida de mais logo é quase uma final. 

Se o Benfica aterra nos Países Baixos com resultados e futebol pouco convincentes nas últimas semanas, o Ajax melhor não está. Atravessa uma crise estrutural, que levou às saídas do treinador John Heitinga e do diretor-geral Alex Kroes no início do mês, e tem apenas uma (!) vitória nos últimos nove jogos. No fim de semana, o conjunto de Fred Grim perdeu em casa com o recém-promovido Excelsior (1-2) e já está a 14 pontos da liderança do PSV na Eredivisie. Para perceber melhor o que se passa no gigante de Amesterdão e aquilo que o Benfica pode esperar hoje, sentamo-nos à conversa com Eduard van den Brink, jornalista do VoetbalPrimeur dedicado à atualidade do Ajax

«Esta equipa não tem os jogadores certos e os poucos que tem com qualidade não encaixam entre si. No terço ofensivo, por exemplo, a qualidade de passe é terrível e diria que esta equipa não prima pela inteligência, porque sofre penáltis em quase todos os jogos por erros individuais completamente desnecessários. Há pouca esperança [nos adeptos] para o jogo de hoje e há um certo medo de que o Ajax se transforme no novo Anderlecht», diz-nos Eduard, referindo-se à saída de cena da alta roda europeia do clube belga desde há vários anos. 

Na última visita a Amesterdão sorriu o Benfica, com golo de Darwin a decidir e dar a passagem aos quartos de final da Champions - Foto: IMAGO

Puxando a fita alguns anos atrás, foi um autêntico milagre do Tottenham a impedir os neerlandeses de, em 2018/19, marcarem presença na final da Champions. Uma reviravolta épica dos ingleses em Amesterdão, com hat trick de Lucas Moura, acabou com o sonho de um Ajax que, então, encantava a Europa com um futebol avassalador e que arrumou com Real Madrid e Juventus nos oitavos e quartos de final. No banco estava Ten Hag e em campo uma autêntica geração dourada das escolas, com De Ligt, Frenkie de Jong, Ryan Gravenberch e Van de Beek como figuras da formação dessa equipa. Pérolas dessas o Ajax não tem hoje e o declínio tem-se acentuado de forma abrupta.

«A nova geração não tem o potencial dessa de 2019. Há qualidade em Mokio ou Godts, mas ainda estão longe de serem jogadores importantes na equipa. Depois de Overmars [então diretor-geral] ter sido obrigado a despedir-se, em 2022, o clube entrou em queda livre, porque vivia muito da rede de contactos dele e Overmars não deixou um plano para quem se seguisse. Há muita gente no clube que está presa ao passado, até ao que o Ajax foi nos anos 90 com Van Gaal e é preciso avançar. Recentemente, um dirigente disse que 'não é necessário um estrangeiro vir ensinar-nos a jogar futebol' e isto mostra bem o problema que existe. O clube está preso ao passado e precisa de nova liderança», explica Van den Brink.

A temporada passada foi uma verdadeira tragédia para o Ajax e algo pelo qual o Benfica, numa escala ainda maior, passou em 2012/13. À entrada para as últimas cinco jornadas da Eredivisie, a equipa então treinada por Francesco Farioli dispunha de nove (!) pontos de avanço sobre o PSV e o selar do título parecia uma mera formalidade. Puro engano. Num colapso sem precedentes, a vantagem esfumou-se em quatro jogos, com duas derrotas e dois empates, e no final só sobraram lágrimas. E Farioli sairia para, pouco tempo depois, assumir o FC Porto

«O maior problema e que justifica esta época tão pobre é a saída de Farioli. É a peça que falta. Com ele, o Ajax tinha uma voz clara, respeitada e o treinador era adorado pelos jogadores. No mercado, o Ajax perdeu talento e um grande treinador, porque, não tenho dúvidas, se Farioli ainda aqui estivesse a equipa seria competitiva. É um treinador que sabe o que é preciso para vencer. Não creio que os resultados desta temporada se relacionem com o colapso mental que aconteceu há uns meses, mas sim com a incompetência que entrou no clube quando Farioli saiu», destaca o jornalista da VoetbalPrimeur, sublinhando que a escolha de John Heitinga foi um erro que o tempo confirmou. 

«O Heitinga é um excelente adjunto, basta ver o que dizem dele os jogadores do Liverpool [foi adjunto de Arne Slot nos reds], mas comunicava mal com os jogadores e com a imprensa. Não era o homem certo para o Ajax, porque a equipa é muito frágil emocionalmente e precisa de alguém capaz de a alcançar e motivar», detalha, explicando que o clube tentou voltar a ter Erik ten Hag no banco, mas o neerlandês recusou, alegando que só trabalharia com Alex Kroes [diretor-desportivo que saiu] ou Marc Overmars, cujo regresso foi colocado em cima da mesa, mesmo depois do escândalo que conduziu à sua saída, em 2022.

ATENÇÃO NA DEFESA

Apesar da sucessão de tropeções que tem sido a temporada do Ajax, há qualidade no plantel de Fred Grim para colocar o Benfica em sobressalto, com o destaque a ir para Oscar Gloukh. O israelita, contratado ao Salzburgo em janeiro deste ano, é o fantasista da equipa, atuando na sombra do ponta de lança Weghorst, que passou pelo Manchester United com Ten Hag. É um gigante à antiga, o vulgo pinheiro de área, com quase dois metros e que deverá oferecer trabalho de sobra pelo ar aos centrais encarnados.

«Gloukh tem sido o ponto de luz numa época terrível. É muito bom de bola, está em constante procura de movimentos verticais e é muito inteligente. O Weghorst é um perigo na área, embora, hoje em dia, a sua condição física seja sempre uma incógnita e ainda há o Mika Godts, um extremo esquerdo muito interessante, capaz de inventar jogadas do nada», destaca Van den Brink.

COMO FERIR O AJAX

Será pelas alas e através das bolas paradas ofensivas que os jogadores de José Mourinho poderão criar maior mossa na defesa adversária. Os donos das alas na defesa - Anton Gaaei ou Lucas Rosa na direita e Owen Wijndal na esquerda, embora o jovem Alders também possa ser aposta - apresentam grandes debilidades defensivas e, apesar de ter o plantel magro em extremos desequilibradores, será muito por aí que o Benfica poderá causar mossa na estrutura adversária.

«Com o Fred Grim, os adeptos esperam um Ajax mais cauteloso e equilibrado. Se fosse o Mourinho, deixava o adversário controlar o jogo, como fez o Inter, entregando a bola, para depois os ferir em transição. Se o Benfica assentar o jogo na sua defesa, poderá ganhar o jogo em contra-ataque. Este Ajax não tem muitos jogadores de desequilibrar e criar algum momento de magia contra defesas organizadas e é sobretudo essa a grande diferença para as grandes equipas que teve no passado. Neste momento, há uma grande instabilidade emocional e, caso as coisas comecem a correr mal, podem desabar facilmente», explica o analista.