Os heróis de infância são mesmo assim: aproveitam-se da inocência das crianças e emprestam-lhes doses gigantescas de fantasia que criam, dali para a frente, um sistema imunitário contra os defeitos do humano que veste a capa, espada ou um equipamento às listas azuis e brancas. Não é preciso ser psicólogo para saber que é nos primeiros anos de consciência e memórias vívidas que se moldam personalidades e adorações. Admito que a minha relação de crente face ao estatuto de deus Maradona (talvez já se tenha percebido pelo título fixo deste espaço, a vila onde nasceu o génio) se deva mais a esse lado infantil mas talvez por isso mesmo a tenha mantido bem acesa, porque voltar a Maradona era (e é) voltar a uma época de felicidade. E isso nunca queremos apagar da memória.

Só o percebi mais tarde: naquele 30 de junho de 1986 eu entrava na era da globalização. Passava a adorar muito mais um jogador argentino que qualquer português. Recordo-me tão bem de nem sequer ter visto as (poucas) repetições do genial golo à Inglaterra porque andava aos gritos pela casa gritando qualquer coisa como um «não é possível», repetidas vezes, e assomando à varanda para dar a nova aos amigos que jogavam à bola na rua (uns porque não ligavam muito ao Mundial, outros porque nem sequer tinham TV em casa). Terá sido, aos 8 anos, o meu primeiro momento de transcendência. Nunca se esquece.

Seria no entanto redutor considerar que Maradona marcou apenas uma geração. Há crianças que nunca o viram jogar e o elevam à figura divina, estatuto  que nenhum outro jogador de futebol conseguiu alcançar até hoje na história da modalidade. Se já tinha essa ideia enraizada pelo que lia, via e ouvia tirei as dúvidas no Bairro Espanhol, em Nápoles, onde ainda hoje se mantém a pintura gigante de El diez, com a cara em cima de uma janela - como se cada napolitano fosse convidado a subir ao ultimo andar e se tornasse um pouco de Maradona, naquela aura romântica que sempre marcou a carreira do argentino.  

Será sempre discutível dizer que foi o melhor jogador do mundo. É por vezes cruel fazer esse exercício porque se Maradona não viveu na era da internet muito menos Pelé teve esse benefício. Para mim, foi simplesmente  o melhor pela razão de nunca mais ter visto um jogador ganhar quase sozinho um Mundial e transformar um clube sem história de conquistas como o Nápoles num emblema vencedor. Pegar nos pobres do sul de Itália (o campeonato que era, de longe, o melhor do mundo) e bater-se contra os ricos do norte.

Tivesse Maradona brilhado na Juventus ou no Milan e provavelmente não se teria tornado no que se tornou: jogador-combatente, a bandeira contra as elites, punho ao alto, cabeça ao vento, coração solto, verbo fácil e por vezes verrinoso. Maradona foi muito mais que um futebolista e hoje é quase impossível lembrarmo-nos dele apenas e só como um génio dos relvados. Os argentinos não choram apenas o adeus do jogador, choram alguém que foi um deles, relação de proximidade que não é possível encontrar com nenhuma figura do futebol. Daí que todos tenham perdoado os excessos e a autodestruição de El Pibe após pendurar as botas. Que a reação fosse de complacência a confissões como esta  no documentário de Emir Kusturica: «Que jogador eu teria sido se não fossem as drogas...» Maradona foi sem dúvidas o jogador mais amado da história. Amado por argentinos, por napolitanos mas também por portugueses, franceses, espanhóis ou chineses. Morreu o homem, nasceu definitivamente a lenda.