António Dantas com o troféu conquistado na Galiza. Foto Miguel Nunes
António Dantas com o troféu conquistado na Galiza. Foto Miguel Nunes

«Não consigo viver do longboard»

Aos 22 anos, António Dantas sagrou-se campeão da Europa da modalidade, está no circuito mundial mas os apoios que recebe são escassos e faz o que gosta graças aos 'ricos pais'. Tem em Cristiano Ronaldo uma referência e sonha viver da modalidade que quase chegou a LA2028

— O António é campeão europeu de longboard. Qual é a diferença para o surf? É só o tamanho da prancha?

— Também. A diferença vem principalmente do tamanho e da maneira como se aborda a onda e o surf. A grande diferença entre o shortboard e o longboard é o facto de nós, longboarders, conseguirmos fazer um leque de manobras que no shortboard não existe. Entre elas o nose ride, que gosto muito, andar no nose da prancha, na ponta.

— Não acha que as pranchas longas são associadas às pessoas mais velhas?

— Completamente. Ao longo dos anos eu, o meu irmão e muita gente jovem temos vindo a provar o contrário. Temos mostrado que essa ideia está errada, que o longboard é para todos. Mas sim, existe muito essa associação ao ‘velho gordo que vai surfar’.

—E de repente aparece alguém com 22 anos...

— Exacto [risos]. Comecei a surfar de longboard com 14 e via as pessoas, via os olhares — sentia um bocado esse preconceito.

— O seu irmão também é surfista, foi por causa dele que começou?

— Foi o meu irmão mais velho que abriu o caminho. No início não gostava muito de surf — comecei a ir a ATLs [Atividades de Tempos Livres] de verão, mas gostava mais de jogar à bola e playstation.

— E tinha jeito para a bola?

— Era guarda-redes. Tinha jeitinho, mas nunca fui grande promessa. Depois o futebol começou a correr menos bem, deixei de gostar e parei; ficava em casa a jogar PlayStation. Um dia a minha mãe chamou-me para ir à praia ver o meu irmão, que ia ter a final do Nacional em São Pedro, na nossa praia. Eu não queria — lembro-me de fazer birra, era novo [risos] —, e a minha mãe obrigou-me. Lembro-me dele ser campeão nacional e de ficar maravilhado quando o carregaram em ombros; toda a gente a bater palmas — foi um espetáculo. Lembro-me de pensar: ‘Fogo, o que é isto? Eu também quero’. E assim começou [risos].

Levo duas pranchas, não consigo levar mais; o limite normal das companhias é 24 quilos. Muitas vezes, bato as pestanas porque pesam mais e a senhora do check-in tem pena de mim. Além disso, custa carregar mais do que duas e eu não tenho capas para mais.

— E começou logo no longboard?

— Depois desse episódio na praia com o meu irmão, sim. Comecei com o tio Tiago, o Tiago Magro — é como se fosse um tio. Mais tarde cruzei caminhos com o João Ferreira, que me acompanha, e a partir daí foi sempre a subir.

— E os amigos não diziam que o longboard não é surf, como fazem com o bodyboard?

— Diz-se que são disciplinas menores com prancha. Já estou habituado a explicar o que é.

— Este título europeu pode ajudar a desmistificar ou a acabar com o estereótipo de que é um parente pobre do surf?

— Infelizmente, acho que não. Se fosse para mudar, já teria mudado. O longboard está num bom caminho e está a crescer mas problema é o mesmo das modalidades mais pequenas. Temos portugueses com bons resultados internacionais — no longboard, no skate, na canoagem, e por aí fora — mas não os vejo mais falados. Eu ligo a televisão e está a dar futebol.

— O facto do longboard não ser olímpico prejudica?

— Sim. Havia uma proposta para o longboard entrar nos Jogos Olímpicos de Los Angeles 2028, o que faria todo o sentido, até porque as provas seriam em Los Angeles, que tem ondas excelentes para esta modalidade. Se tivesse entrado, seria uma mais-valia para o longboard em Portugal e o resto do mundo. O meu título, por si só, não muda a perceção das pessoas sobre o longboard neste país, embora espero que inspire os miúdos: eu fui o primeiro a ser campeão europeu pela WSL e pela Federação Europeia, se não me engano. Estou a chegar a sítios que, quando cresci, não eram visíveis — nunca ninguém tinha ganho uma etapa da WSL.

—E imaginava chegar aqui?

— Não, de longe! Era só para jogar menos PlayStation. Se ganhasse já chegava. Depois a Europa e agora quero chegar ao Mundo!

— Quando percebeu que podia ser uma coisa mais séria?

— Cedo. Comecei a treinar a sério com 12 anos , durante todo o ano. Aos 14 fui campeão nacional.

—Treinar o ano todo implica o quê?

IPDJ negou-lhe estatuto de alta competição
António Dantas interrompeu o curso superior que estava a tirar por questões burocrátias. «Apesar de ter sido campeão europeu sub-18 e de ter vários títulos internacionais e nacionais. Por alguma razão o IPDJ não achou que eu tivesse direito ao estatuto. Logo, não tinha faltas justificadas para quando ia representar o país do outro lado do mundo. Chegava à escola depois de um mês fora e batia com a porta no nariz, com razão — as professoras diziam: 'Então, mas tu faltaste ao mês mais importante...'», conta. Ainda por cima para ir surfar. «Pois, parece que é brincadeira, Representei Portugal do outro lado do mundo, chegava e ouvia :'ok, mas faltaste um mês'. Faltei ao mês das apresentações, ao mês dos trabalhos, ao mês de tudo. Tinha estado o ano todo assiduamente e pontualmente, e no fim do ano cortavam logo metade das cadeiras que eu podia ter feito por causa dessas faltas que não conseguia justificar. Ao fim de dois anos fartei-me e disse: 'Pronto, não quero mais disto'. Nessa altura deram-me o estatuto[risos]. Mas pretendo voltar e acabar», promete.

— Era escola, praia, casa. Não havia mais nada. Faltava a aniversários porque queria, não era obrigado. Era a primeira coisa em que pensava na escola: ‘Quando é que vou sair para a praia?’ Com ondas ou não, chuva ou sol, eu estava na praia.

— E agora?

— António: Agora já não tenho escola, mas quero voltar a estudar. Estive na faculdade até há dois anos.

— A tirar o quê?

— Estava a fazer um curso superior no Estoril — Gestão do Lazer e Animação Turística. É giro e prático. Parei porque, nesses dois anos, não me deram o Estatuto de Alta Competição.

— Então, neste momento, é apenas longboard como profissional?

— As coisas estão a correr tão bem que sinto que é agora que tenho de dar o litro — não deixar passar o comboio, não é? A faculdade não se vai embora; isto, qualquer dia, passa. Estou a aproveitar enquanto dá. Mas não sai da minha cabeça a parte dos estudos e acabar o curso — dar esse gosto à minha mãe, que também quer ter um filho formado.

— Este troféu é do título final?

— É o título do final do ano, envolvendo duas etapas. A primeira foi em Inglaterra — tive um segundo lugar. A segunda foi em Ferrol, Galiza — consegui ganhar; foi a segunda vez consecutiva em dois anos. No final do ano quem tinha mais pontos era eu e ganhei o circuito WSL. À semelhança do que acontece no surf, são várias etapas e, no final, soma-se tudo.

— No final ganhou o título

— Exacto. Não fui campeão do mundo, mas fui campeão da Europa. Este troféu é da Federação Europeia de Surf — esse circuito teve quatro etapas; eu faltei a uma porque estava numa prova do mundial da WSL, em Huntington Beach. Mesmo assim, com apenas três etapas, consegui ganhar, no Estoril e ser campeão europeu em casa, com a família, com amigos — com toda a gente. Foi um sonho.

—Foi a sua melhor vitória?

— Acho que foi a que mais recompensou; a que mais valeu a pena. Desde os 12, foram 10 anos e este foi talvez o fruto mais saboroso desse trabalho. Fui campeão europeu na minha praia, com as minhas pessoas à volta. Acho que foi a mais gratificante.

— Sabia, à partida, que podia ganhar?

— Era pouco provável. Tinha faltado a uma etapa e eu estava em quinto lugar no ranking; havia muita gente à frente na disputa pelo título. Fui para o campeonato com expectativas muito baixas. Soube uns dias antes que, se eu fizesse “X” e o outro perdesse “Y”, era possível. Tiveram de se alinhar muitas coisas, e alinharam-se. Quando descobri, foi incrível — as estrelinhas alinharam-se.

—É a sua praia porque é o sítio onde cresceu ou porque é onde mais gosta de surfar?

— Os dois. Quanto mais saio para viajar e conhecer, mais valorizo o que temos cá. É curioso, é engraçado.

—Há algum sítio onde queira muito surfar?

— Indonésia. Há vários — é uma lista! Já fui a muitos sítios, mas ainda há muitos para visitar. Indonésia é um deles; África do Sul outro; América do Sul também — nunca estive na América do Sul. Estive na América Central, em El Salvador, com ondas altas; estive no México. Mas nunca estive na América do Sul. Por isso ainda há muita viagem por fazer. Até agora, São Pedro é o meu sítio preferido, sem dúvida.

No longboard ganhamos 5 mil euros se vencermos uma etapa mundial. Cinco mil euros é quase o dinheiro que se gasta para lá ir. Por isso, se eu consigo fazer vida do longboard? Não, não consigo. Consigo, no máximo, não ter despesas enormes.

Este triunfo abre a porta do Circuito Mundial?

— Sim. Já me abriu este ano. Este circuito da WSL Europa qualifica para o mundial. Tivemos a primeira etapa em Huntington Beach, depois Bells Beach e, no fim, Abu Dhabi — que foi o meu melhor resultado, 9.º. O surf tem ainda uma etapa que é o Challenger Series; o longboard não tem, passa direto do Qualifying series para o CT [Championship Tour].

— Então, além da Yolanda Hopkins, vamos ter o António no CT também?

— Exacto. Até já me tinham a mim antes de terem a Yolanda! [risos].

Mesmo com poupança e controlo, pode chegar aos 10 ou 15 mil euros num ano, facilmente. São voos, estadias, alimentação, transportes. Se fosse só para Espanha, França, talvez desse. Mas vai para a Austrália, para a Califórnia, para Abu Dhabi — sítios caros.

— Quantas etapas são?

— Do mundial são quatro. A última só vai o Top 8, tem um cut como o surf

— Consegue viver do longboard?

— Não. Ainda há muito paitrocínio. A Câmara de Cascais e o Surfing Clube de Portugal têm sido as entidades que na verdade tornaram isto possível. Se não fossem eles, eu nunca teria ido ao mundial porque não teria possibilidade.

— É muito dispendioso um ano no circuito?

—É caríssimo. Mesmo com poupança e controlo, pode chegar aos 10 ou 15 mil euros num ano, facilmente. São voos, estadias, alimentação, transportes. Se fosse só para Espanha, França, talvez desse. Mas vai para a Austrália, para a Califórnia, para Abu Dhabi — sítios caros.

—E há prize money no circuito?

—Há, mas é muito fraquinho comparado com o surf, por exemplo. Não tem nada a ver. Um surfista pode ganhar 100 mil euros numa etapa mundial e no longboard ganhamos 5 mil. Cinco mil euros é quase o dinheiro que se gasta para lá ir. Por isso, se eu consigo fazer vida do longboard? Não, não consigo. Consigo, no máximo, não ter despesas enormes.

—Não consegue ganhar dinheiro.

— Nada disso. Tenho de ter um trabalho, estudar, ter algo que me sustente porque o longboard não me vai — infelizmente — pôr pão na mesa, não me vai dar casa, não me vai dar nada disso. O que eu estou a tentar fazer é aproveitar enquanto dá, enquanto tenho os meus ricos pais — não pais ricos, mas ricos pais - que me ajudam e me permitem ter esta vida. E, mais uma vez, o clube e a Câmara de Cascais ajudam-me.

— Que passos se podiam dar para poder ter mais apoios?

— Um desporto precisa de visibilidade. Se não há visibilidade, não há dinheiro. Se não há dinheiro, não há apoios.

— Se não há resultados, não há visibilidade, mais pressão?

— Resultados eu tenho tido há 10 anos. A visibilidade tem vindo a crescer, sim, mas ainda não é suficiente para haver marcas a apostar seriamente no desporto, de forma a que eu consiga um patrocínio. Tenho vários apoios: a Lufi dá-me pranchas, a Janga dá-me fatos, a Devoted dá-me material técnico e roupas. Nenhum deles me dá dinheiro. E eu preciso de dinheiro — para voos, para comer, para dormir, para fazer vida do longboard. E isso eu não tenho. Tenho vários apoios; patrocínio financeiro não tenho nenhum.

Ganhar uma etapa do mundial da WSL também é um dos sonhos e ser campeão do mundo, obviamente.

Há muitos atletas a praticar longboard em Portugal?

—Haverá bastantes. Como dissemos, se não for futebol, fica um bocado para trás; é esquecido. D escobri que a Seleção de rugby tinha sido campeã europeia no dia em que saí na SIC Notícias — foi aí que reparei, a ver o noticiário. Podia haver mais apoios do IPDJ, da Federação, de entidades que, a meu ver, servem para isso mesmo.

— Que expectativas tem em termos desportivos para 2026 ano?

— No circuito mundial o objetivo sempre foi ficar no top 10, o que garante logo a requalificação para o ano seguinte. Esse é o meu principal objetivo. Nos últimos dois anos terminei em 17.º. Ganhar uma etapa do mundial da WSL também é um dos sonhos e ser campeão do mundo, obviamente.

— Sente que compete em desigualdade com alguns adversários por causa das poucas condições?

— Com alguns sim; outros não. . É uma realidade que não é só nossa. No longboard são muito poucos os que conseguem realmente viver disto. A maioria tem algo associado — um negócio, um restaurante — que lhes dá um backup.

—Além do surf, que outras modalidades gosta de ver?

— Treino jiu-jitsu há cinco anos e interessa-me bastante. Gosto de skate, de bicicleta; sempre gostei de desporto desde criança. Gosto de futebol, embora não seja aficionado; gosto de desporto em geral.

— Algum atleta-referência?

— Cristiano Ronaldo. É uma inspiração, o maior.

— Não só porque é do Sporting, como António

— Não [risos]. Por ser português e por levar Portugal mais longe. É uma pessoa extraordinária. Não só a resiliência — a confiança, o esforço. Tudo isso me fascina.

— Com 40 anos podia estar sentado no sofá ou a fazer o que quisesse.

— E está lá, continua. Desde criança tenho um DVD do primeiro documentário sobre o Ronaldo; às vezes ainda pego nele e vejo. É giro, interessante. É um ídolo e um exemplo para mim e para muitos: se lutares, treinares e fizeres, acontece.

—Pensou em desistir?

—Já pensei. Às vezes, quando vejo os vídeos, penso nisso. Já pensei, mas o longboard tem-me dado tanto que enquanto der para fazer vou continuar e vou fazer bem.

— Uma vez que não é dinheiro que dá, o que é?

— Dá-me viagens, pessoas, sítios, cultura. Dá-me experiências — muita coisa.

— E dores de cabeça, também?

— Também. Aeroportos, aviões... Carros, pranchas. Sim, é stressante e por vezes chato.Às vezes invejo um bocado a malta do bodyboard ou do surf: vão viajar e é mais fácil. Comigo é mais complicado — custa mais. Mas acho que vale a pena. Depois, quando entro na água… Levo duas pranchas, não consigo levar mais; o limite normal das companhias é 24 quilos. Muitas vezes, bato as pestanas porque pesam mais e a senhora do check-in tem pena de mim. Além disso, custa carregar mais do que duas e eu não tenho capas para mais.