Mourinho trouxe o ‘contra tudo e contra todos’ para o Benfica
Pimenta Machado costumava dizer que «aquilo que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira». Quando ouço José Mourinho, às vezes lembro-me da máxima imortalizada pelo antigo presidente do Vitória de Guimarães. Nunca sei se as declarações do treinador do Benfica são genuínas ou apenas instrumentos de mind games circunstanciais que num futuro próximo ou distante se encarregará de revelar. Quem não se recorda, por exemplo, dos elogios ao plantel dos encarnados antes do play-off da UEFA Champions League perdido pelo Fenerbahçe que o próprio, já na Luz, admitiu terem sido exagerados para aliviar a pressão sobre a equipa turca?
Por alguma razão, Mourinho é especial e decifrar o que lhe vai na alma é tarefa quase impossível, mas as (in)diretas dirigidas à classe dos comentadores, que tanta comichão lhe estão a provocar atualmente, reavivaram-me o discurso do… contra tudo e contra todos, tão habitual noutras paragens por onde passou no início do século. A ironia é evidente — afinal, é precisamente esse o lema que alimenta a identidade do FC Porto.
Após a vitória convincente na receção ao Nápoles, José Mourinho disparou sem rodeios.
«Será mesmo muito difícil para os experts atacar o Benfica, vão ter dificuldades, porque o Benfica fez um grande jogo», atirou, como quem antecipa críticas que surgem — na visão dele — por má-fé. E reforçou a ideia de perseguição constante ao enfatizar que o Benfica tem «perfil de equipa humilde, que leva paulada de tudo quanto é lado, mas continua tranquilamente a sua caminhada».
É um Benfica apresentado como vítima, enquanto o técnico vai mais longe e ridiculariza análises externas para fortalecer a narrativa interna.
«Recordo-me de que disseram que a construção do Benfica é bola na frente do Otamendi. E mais não faz. Eh pá, melhorámos qualquer coisinha, não?», afirmou. E não perdeu a oportunidade de apontar o tal duplo critério que nota na crítica. O segundo golo, explicou, «se tivesse sido uma equipa com camisola de cor diferente teria tido nota artística elevadíssima».
Convém lembrar que o treinador benfiquista já destacou que o plantel do Benfica tem limitações, que precisa de reforços, que não dispõe de soluções ideais para todas as posições. Ou seja, se é Mourinho a dizer que a manta é curta, é lucidez; se são outros a constatá-lo, é perseguição. Somos todos livres para opinar, desde que a opinião coincida com a dele.
Se lhe apontam que os jogadores regrediram desde que chegou, em setembro, responde com sarcasmo.
«Acho que o Ríos piorou bastante, o Dahl piorou bastante. Há muita gente que piorou bastante. Mas pronto. Siga a Marinha», frisou, palavras que antes do jogo com o Sporting talvez não pudesse proferir...
Entre alegações sem filtro, que constroem um ambiente de permanente tensão, não evitou nova farpa na sequência de uma pergunta que começou por elogiar: «Parabéns, tu percebes da coisa. Pode ser que te levem para substituir algum dos sabichões que não sabe de nada.»
A pose de vítima culminou com a certeza de que o Benfica é um clube facilmente maltratado.
«Não é fácil ser jogador do Benfica… é muito fácil bater no Benfica», lamentou, ponto final num rol de queixas em que só faltou gritar um… contra tudo e contra todos que não envergonharia Francesco Farioli.
Uma das frases que ainda hoje é citada quando se enaltecem os dotes de comunicador de José Mourinho foi dita a 20 de fevereiro de 2003, na primeira temporada completa do special one no FC Porto.
«Em condições normais vamos ser campeões. Em condições anormais também vamos ser campeões», sentenciou, garantida goleada nas Antas, por 6-1, sobre os turcos do Denizlispor, na 1.ª mão dos oitavos de final da Taça UEFA que conquistaria. Um jogo que se seguiu a derrota nos Barreiros diante do Marítimo, duelo no qual Deco foi expulso e suspenso por duas partidas — castigo seria reduzido para uma e por isso pôde jogar na Luz semana e meia depois em triunfo que selou virtualmente o título.
«Se calhar amanhã vão dizer que o FC Porto ganhou a uma equipa fraca e o nosso mérito é reduzido. Foram mais pontos conquistados para o futebol português, oferecidos por um alvo a abater. Isto é fantástico. O que quero dizer?! Os factos são visíveis: o Deco levou dois jogos e o Pepe [à data no Marítimo] três [cumpriria dois], quando socos, cabeçadas e cuspidelas de outros não passam de um ou dois jogos», eis o contexto em que se movimentavam então os azuis e brancos e que redundou na declaração que integra o portfólio das melhores tiradas inspirada no… contra tudo e contra todos.
José Mourinho limita-se, pois, a reencenar um clássico intemporal — ontem dragão ofendido, hoje águia injustiçada, amanhã logo se verá consoante o destino.