Miguel Cardoso, treinador do Sundowns, inicia a luta pela conquista da Liga dos Campeões Africanos (FOTO SÉRGIO MIGUEL SANTOS)
Miguel Cardoso inicia hoje a luta pela conquista da Liga dos Campeões de África (FOTO SÉRGIO MIGUEL SANTOS) - Foto: IMAGO

Miguel Cardoso: «Mais do que ganhar campeonatos, procuro construir campeões» 

Miguel Cardoso tornou-se o primeiro treinador estrangeiro a conquistar a Liga da África do Sul. Bateu recordes e inicia este sábado a luta pela Champions Africana

Miguel Cardoso está a viver o momento mais feliz da vida de treinador. Acabou de conquistar o título da África dos Sul e fala dos muitos recordes que o Sundowns conseguiu bater. Mostra fascínio pelo país. Orgulho pelo facto de ir jogar o Mundial de Clubes, mas também emoção e dor quando fala da guerra da Ucrânia. E houve ainda tempo para dizer o que nunca tinha dito publicamente, como a revelação que esteve duas vezes para ser treinador do Vitória de Guimarães. Hoje é o primeiro jogo da final da Liga dos Campeões Africanos e fique a saber como o treinador português preparou o duelo com o Pyramids.

— Após a a troca do Espérance da Tunísia pelo Sundowns da África do Sul, diria que não poderia ter escolhido melhor?

— Sem dúvida! Embora a minha saída do Esperance fosse algo mais ou menos preparado, porque já havia alguns contactos do Sundowns. Senti que era altura da mudança porque se tinha atingido praticamente tudo aquilo que era possível atingir.

— No Sundowns encontrou o que esperava?

— Neste momento, fazendo um balanço, é um nível de satisfação muito grande relativamente à mudança para a África do Sul. Aquilo que é a realidade do Sundowns e aquilo que é de facto a forma como vivemos aqui e como nos relacionamos no fenómeno, no jogo e como de facto também conseguimos obter resultados num período de tempo tão curto. São apenas seis meses, mas resultados são de tal forma marcantes que nos põem num patamar de satisfação extremamente alto.

— O Sundowns foi campeão pela oitava vez consecutiva. Mas fez muito mais que isso. Tem a noção das marcas que alcançou?

— Sim, eu tenho noção. Ao longo da época fomos batendo recordes. O recorde de pontos, de golos. Fomos até ao fim superando tudo o que foi feito antes. Tudo o que havia para eclipsar foi eclipsado. Eu próprio tenho dificuldade em saber tudo. Fizemos coisas incríveis, mas diria que marcante foi ter sido o primeiro estrangeiro que ganha a Liga na África do Sul. Pela primeira vez houve um campeão a ganhar todos os jogos em casa. Passámos a ser também a equipa que ganhou mais vezes casa e fora ao maior número de adversários.

— Foi um passeio, não?

— Não é o caso, porque este ano os Orlando Pirates fizeram uma época também muito boa. O que é interessante, ao contrário dos últimos sete anos, este ano o Pirates foi um adversário à altura. Mas de facto é uma época marcada por um conjunto de realizações extraordinário, que me deixa, obviamente, muito satisfeito. Deixamos a fasquia num ponto que será certamente lembrada ao longo de muitos anos.

— Segue-se a final da Liga dos Campeões com o Pyramids. É mais história a bater-lhe à porta?

— Sem dúvida. O fenómeno da Champions League nestes clubes grandes de África é impressionante, os grandes clubes de Marrocos, os grandes clubes do Egito, o Esperance da Tunísia e depois o Sundowns, que é um clube emergente, que desde que a PSL foi criada se afirmou como o maior em termos de historial de títulos da África do Sul. Há sempre a procura por fazer uma boa Champions. É como na Europa ou na América do Sul com a Libertadores, é o grande objetivo destes clubes. O Sundowns fez apenas uma final e ganhou-a, daí que há muito tempo almejava atingir uma nova final e poder discutir o título. Curiosamente, no ano passado eu eliminei-os ao serviço do Espárance e fui à final, o que é um dado naquilo que é carreira de um treinador absolutamente fantástico.

— Será, pois, a segunda final consecutiva...

— Sim, vou fazer duas finais. Ser campeão na Tunísia e na África do Sul e fazer duas finais de Champions é incrível. No ano passado perdemos contra o Al Ahly e este ano eliminei-os na meia-final.

— Há muitas coincidências neste trajeto na Champions nos últimos anos. Quer contar-nos mais sobre isso?

— Curiosamente eu no ano passado tinha eliminado o Sundowns e este afastei o Espérance. É curioso, não? E na meia-final afastei este ano o Ahly, com quem perdi a última final. E eliminei-os no mesmo estádio onde joguei a final. É uma coisa incrível. É bom sentir que estamos a fazer história. Não podemos pensar que se não correr bem tenha sido um insucesso, porque não será. Mas é a nossa vontade, responsabilidade e intenção naturalmente muito forte de discutirmos a final ao limite consagrando no fundo aquilo que é o transporte de uma estrela na camisola, que seria fantástico.

— O Miguel já treinou em Portugal, em França, em Espanha, na Ucrânia, na Grécia. Qual é que foi o maior desafio?

— Não tenho dúvida que muito daquilo que o segredo de um treinador é, antes de se preocupar em conquistar campeonatos, preocupar-se em construir campeões. Vivi contextos tão diferenciados como a Tunísia, um país árabe, muçulmano com uma cultura completamente diferente e depois chegar à África do Sul, um país de um nível de desenvolvimento extraordinário, com pessoas com uma abertura pessoal fantástica, com uma multiculturalidade, com mais que uma abertura para aquilo que é hoje em dia a partilha entre brancos e negros que, como sabemos, é o legado de Nelson Mandela e Desmond Tutu. E depois perceber a que nível é que este país se projetou num período de tempo tão curto e de que forma os brancos e os negros vivem já completamente equilibrados naquilo que é o crescimento do país. Isso também me deu muita satisfação e uma energia tão grande que me permitiu compreender o povo, compreender os jogadores, lidar com gente muito, muito, muito boa e a partir daí conseguir estabelecer elos de ligação pessoais que naturalmente levaram ao que o treinador se pudesse impor. Eu acho que esse é o grande sucesso do Miguel Cardoso na África do Sul. De qualquer forma eu tenho que referir uma coisa que me parece fundamental, é que Miguel Cardoso, por mais que seja um homem mais maduro, um treinador mais maduro, também tem hoje em dia à disposição dele muitas coisas que não teve noutros contextos.

—...

— Assim como aquilo que foi a realidade do Rio Ave na minha primeira passagem com o Miguel Ribeiro. Era um clube super estruturado, foi completamente diferente daquilo que eu encontrei na minha segunda passagem e é importante que as pessoas percebam isso, porque nós treinadores dependemos disso. Vejo muitos treinadores a fazer carreira porque só passaram por contextos exatamente como aqueles que eu vivo, porque se tivessem passado por outros provavelmente tinham tido e tinham de ter carregado nas suas costas também coisas que eu também próprio tive que carregar. Sinto-me muito feliz, não sinto nenhum peso relativamente àquilo que foi o passado, sinto-me orgulhoso por viver os contextos profissionais que vivi.

— Ainda hoje a sua passagem pelo Rio Ave é mercante, sente que foi um marco para a sua carreira?

— A imagem do Rio Ave de 2016-17 é brutal. É também um legado que me vai acompanhar e eu neste momento sou um treinador muito feliz, muito em paz comigo. Acho que o futebol nestes últimos dois anos me deu e eu dei ao futebol aquilo que precisávamos ambos. E é naturalmente bom ganhar títulos e cimentar-me em termos daquilo que é imagem de treinador. Creio que em Portugal não fui devidamente valorizado. Nós portugueses temos também um bocadinho o hábito de viver à volta das pessoas da tribo do futebol e quando aparece um outsider na primeira oportunidade nós estamos dispostos e disponíveis para o afastar.

— O futebol português é mais difícil?

— Não, de todo. A minha primeira experiência é no futebol português. Durante 15 anos fui treinador em Portugal e marquei também como adjunto trabalhos de sucesso, fazendo história na Académica ou no SC Braga, com treinadores com quem tenho orgulho de ter trabalhado e amigos que ficaram para a vida. Mas às vezes é preciso sair para encontrarmos um espaço de valorização porque nós em Portugal, de facto, temos uma forma de ser que não vou chamar mesquinha ou pequena, mas pensamos que somos o centro do mundo. Mas o centro do mundo é exatamente onde nós queremos fazer trabalho bem feito. O centro encontrei-o em espaços de realização fantásticos, com um leque de experiências extraordináriaso que me fazem, aos 52 anos, sentir-me um homem preenchido, realizado, feliz. Não sinto que deva nada ao futebol português, nem o futebol português me deve nada a mim. Sinto-me feliz por ter reconhecimento. Sabe, recebi mensagens do Presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol, do Presidente da Federação Portuguesa de Futebol, de muitos e muitos amigos. Isso sim, isso é no fundo a realização. E acabei de receber também a informação que me foi atribuído o prémio José Maria Pedroto, o que é incrível. É bom ser reconhecido, toda a gente gosta de ser reconhecido. Não estarei no futebol muitos mais anos porque gosto muito da vida e acho que há muitas coisas na vida que eu não tenho tempo para fazer hoje em dia, mas o carinho que vou recebendo é dos maiores troféus.

— A África do Sul pode em breve lutar por um título mundial?

— Não, acho que não é possível nem a médio prazo. Acho que estamos longe, ainda estamos longe.

— Talvez falte também alguma competitividade?

— O campeonato não é fraco, é em geral competitivo. As instalações aqui são em geral muito melhores, mas acho que ainda há um trabalho de base que terá que ser feito para poder ser o país mais competitivo. A seleção principal já está apurada para o Mundial, com o selecionador Hugo Bross a fazer um excelente trabalho. Acho que falta apenas olhar para os jogadores sul-africanos e levá-los para a Europa. Ainda não se vê jogadores sul-africanos os melhores a ir para a Europa e curiosamente era possível porque têm qualidade e são baratos.

— Vê algum jogador seu que pudesse jogar em qualquer equipa da Europa?

— Em qualquer equipa da Europa não diria porque isso seria igualar os melhores jogadores do mundo, mas nas melhores equipas em Portugal não tenho dúvidas.

— Mas há menos intensidade...

— Sabe, ri-me quando há tempos o Rui Borges falava do calendário que o Sporting estava a enfrentar... eu fiz as contas e só consegui rir, porque aqui na África do Sul joga-se ao terceiro dia e na Europa não é permitido é ao quarto. Aqui jogamos muito, tanto que eu tive que aprender e reorganizar-me como treinador. É preciso perceber como é que se consegue treinar e fazer uma equipa jogar com períodos de tempo tão curtos de recuperação. Reforcei uma coisa na qual eu já acreditava, que o próprio jogo é o melhor processo de treino.

— E como é que se prepara uma final continental?

— O Pyramids este ano aparece como equipa muito forte. Fizeram uma excelente campanha na Champions League, embora não tenham jogado com grandes tubarões. Mas cá estão e temos de nos superar nestes dois jogos, com uma dificuldade que é o segundo ser fora, no Cairo. É sempre difícil dizer quem é favorito, eu acho que é arriscar muito, acho que que não há favoritos.

— ...

— Aqui não, mas no Cairo vamos ter de certeza, temperaturas elevadíssimas, o que acrescenta dificuldade. Ninguém sabe o que é jogar com 40 graus, o que é treinar na Tunísia de verão às sete e meia da manhã, o que é treinar durante o Ramadão às onze da noite, o que é jogar no Sudão com níveis de humidade, que só de a gente sair do balneário já está todo molhado. Estes contextos são de uma riqueza tão grande. Ser treinador em África, com viagens de 18 horas e em condições incríveis acrescenta ainda mais desafios. Isto prepara-nos, faz-nos ser melhores treinadores, obriga-nos a refletir mais e mais e torna-nos robustos.